O dia que um telespectador desejou que Clodovil tivesse Aids
Plateia de TV ficou chocada com os insultos de um homofóbico e aplaudiu a reação firme do apresentador
Haters sempre existiram. Mas, antes da internet, eles não eram conhecidos por esse vocábulo inglês e atacavam seus alvos por meio de cartas. Desde que colocou a cara diante das câmeras no início da década de 1980, quando tinha um quadro de moda no lendário TV Mulher, Clodovil enfrentou ofensas, deboches e ameaças. Um dos episódios mais graves ocorreu em 1992.
Durante uma edição do Clodovil Abre o Jogo, na TV Manchete, o apresentador leu trechos de uma carta enviada por um telespectador. “Senhor ou senhora Clodovil? Sinceramente, não sei. Vocês, bichas, são tão nojentas que a gente não sabe decifrar o sexo. Assim como os vermes, só servem para ser pisados. Você tem um adjetivo a mais: é folclórico. Isso conta pontos para você na minha escala de valores.”
Com o auditório em silêncio, impactado pelo teor da correspondência, o comunicador continuou a leitura, ao mesmo tempo em que uma música instrumental era tocada no piano do estúdio.
“Eu, minha esposa e alguns amigos nos divertimos com você. Adoramos principalmente a parte em que você se reconhece imperfeito e antinatural. É isso mesmo: ‘viado’ que não é inteligente e politizado, tipo de bicha que eu detesto porque confunde a gente, tem que ser assim como tu, humilde e inferior.”
Irônico, Clodovil diz que a carta é “elogiosa, maravilhosa”, e lê uma parte especialmente perturbadora. “A tua frescura faz escola. Isso é ótimo. Mais ‘viados’ se identificarão contigo e será fácil para a gente reconhecê-los nas ruas ou quando precisarem de nós. Ainda bem que a Aids continua fazendo estrago. A natureza é sábia. Menos ‘viados’ estarão na rua. Espero que a sua chegue em breve.”
Nesse momento, o público de casa ouviu o burburinho da plateia impactada com a mensagem perversa. Após rápida pausa, o apresentador prosseguiu. “Como infelizmente até de merda tem quem goste, você deve continuar com o que faz. Talvez se você exagerasse um pouquinho mais, vestisse umas roupas de mulher, ou contasse mais piadas de bicha, talvez agradasse mais. Vai por mim. ‘Viado’ que não é palhaço, é o fim.”
Clodovil disse que o texto foi assinado por “M. O. de Ribeiro, de Salvador”, mas não havia nome do remetente no envelope. O apresentador surpreendeu as fãs ao mostrar outra correspondência, recebida poucos dias antes. Quem a escreveu se identificava como jornalista baiano e fazia vários elogios aos pensamentos de Clodovil, inclusive à afirmação de que “o certo é homem com mulher”. O comunicador colocou os papéis datilografados lado a lado diante das câmeras. “Como eu presto atenção na vida, veja se essas cartas não foram escritas pela mesma pessoa”, disse, convicto.
Olhando para a “lente da verdade”, como gostava de dizer, o apresentador dirigiu-se à pessoa que, na avaliação dele, era a autora de correspondências tão distintas. “Eu me chamo Clodovil Hernandes, filho de meu pai e minha mãe, bem educado, bem criado, talentoso, graças a Deus vitorioso. Estou aqui dando a cara pra bater no vídeo. Agora o senhor se esconde com nomes que não são seus. Com certeza tem vergonha do seu pai, da sua mãe, do seu sobrenome, da sua própria vida, que deve ser vergonhosa.”
Clodovil encarou outra câmera, que o mostrou quase em close-up. “O senhor por acaso sabe o que é a Aids? Já viu uma pessoa nesse estado para desejar isso a um semelhante? O senhor deveria fazer o seguinte: venha aqui, eu tenho o prazer de mandar a passagem para o senhor vir aqui ver que tipo de gente vem aqui (no programa), o trabalho que a gente faz. Com certeza o senhor não virá porque não tem coragem de se expor.”
Com o estúdio em absoluto silêncio, ele continuou o desabafo. “O senhor é o tipo de brasileiro que se esconde em muitos lugares. No mundo da política tem muitos como o senhor, que nos fazem muito mal e que se escondem porque não têm coragem, não podem se apresentar. Nós, não. Nós damos a cara pra bater todos os dias porque é assim que temos que fazer. É assim que a gente progride. Eu não posso inventar um tipo de voz (máscula), mas posso provar para o senhor que tenho caráter e dignidade, mais do que o senhor.”
Clodovil então concluiu: “Que vergonha a gente ter que conviver com o senhor. É isso que o País tem demais: gente que bate no peito, “eu sou macho”, entendeu? E o Brasil carece é de homem, porque macho tem de monte mesmo”. A plateia o aplaudiu. O apresentador e estilista morreu em março de 2009, aos 71 anos, em consequência de um acidente vascular cerebral (AVC). Ele exercia o primeiro mandato como deputado federal. Apesar de ser homossexual assumido, não defendia as pautas da comunidade LGBTQ+ e chegou a criticar o comportamento de gays algumas vezes.