TV não deve mostrar só lado exótico da África, diz escritora
Avani Souza Silva defende visão mais ampla sobre a cultura africana nos programas e maior protagonismo negro em novelas e filmes
Um estrangeiro que sintonizar qualquer canal de televisão brasileiro jamais terá a noção de que os negros compõem 56% da população do País. Pretos e pardos estão sub-representados no mais influente veículo de comunicação de massa.
Não há proporcionalidade sequer no gênero mais popular de entretenimento, a novela. Em quase 70 anos de teledramaturgia, poucos folhetins tiveram um negro no papel principal. Podemos citar Xica da Silva (TV Manchete, 1996-1997), Da Cor do Pecado (Globo, 2004) e Viver a Vida (Globo, 2009-201), as três protagonizadas por Taís Araújo.
A mestre e doutora em Literatura de Língua Portuguesa Avani Souza Silva, autora de A África Recontada para Crianças (Editora Martin Claret), identifica evolução na visibilidade do negro na TV, mas critica a maneira limitada como a África é mostrada em telejornais e programas de reportagem. Afinal, aquele continente é muito mais do que a imagem de animais selvagens na savana.
A televisão brasileira falha por quase não promover a cultura africana?
Sim, é uma grande falha, porque a maioria dos programas que enfocam o continente africano nas TVs abertas limitam-se a abordar a vida animal do continente, deixando de lado a cultura, a música, o cinema, a pintura e outras artes de suma importância para o público brasileiro se inteirar do papel dos africanos na constituição da nossa formação étnica. O continente africano ainda é visto e mostrado por um aspecto exótico. Essa a razão dos programas exibirem apenas aspectos geográficos e da fauna. Filmes e documentários africanos produzidos por cineastas africanos, tais como Abderrahmane Sissako (Mauritânia), Ousmane Sembène (Senegal), Flora Gomes (Guiné Bissau), Gaston Kaboré (Burkina Faso), Sol de Carvalho (Moçambique), Zezé Gamboa (Angola), entre outros, deveriam fazer parte da grade de filmes da televisão brasileira. Além disso, os programas infantis deveriam privilegiar a contação de histórias africanas e a apresentação de jogos e brincadeiras praticadas neste continente. Cabe ressaltar que, em relação à cultura afro-brasileira, e não à africana ipsis litteris, a televisão brasileira teve grandes avanços na última década. Passou a inserir em suas novelas e programas temáticas e personagens originários e representativos dessa cultura. Hoje é possível ver protagonistas negros na teledramaturgia, interpretados por atores e atrizes que são celebridades em nosso País, como Lázaro Ramos, Taís Araújo, Camila Pitanga, Erika Januza. E mesmo os atores que estrearam nos anos 50, e que, portanto, marcaram gerações, hoje possuem maior destaque em filmes, séries e novelas, como Antonio Pitanga, Milton Gonçalves, Léa Garcia, a saudosa Ruth de Souza (1921-2019), e outros. Quanto às narrativas, a cultura afro-brasileira se faz cada vez mais presente na televisão; por exemplo, em Malhação Viva a Diferença (2017-2018), da Globo, e mesmo nos telejornais. A Maju Coutinho se tornou uma celebridade.
Por que o brasileiro consome pouco da cultura africana e, especificamente, da literatura daquele continente?
O Brasil mantém relações comerciais e de cooperação técnico-científica e acadêmica com países africanos desde os anos de 1960, tendo havido refluxo nas décadas seguintes e uma retomada dessas relações a partir do final dos anos de 1990 e início dos anos 2000. Isso naturalmente vai refletir na trocas culturais com o continente, culminando, inclusive, como resultado de movimentos populares no Brasil, com a adoção de ações afirmativas de inclusão do negro na sociedade brasileira (cotas raciais, instituição do Dia da Consciência Negra, demarcação de terras quilombolas etc.) e a promulgação da Lei 10.639/2003, que obriga o ensino da história e cultura afro-brasileira na escola nacional, do fundamental ao ensino médio, abordando a história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a sua contribuição nas áreas social, econômica e política do nosso País. Nesse contexto, a cultura e a literatura africanas começaram a ser mais divulgadas, sendo que diversos títulos da literatura produzida nos Países africanos de língua portuguesa passaram a fazer parte de importantes vestibulares públicos no Brasil. No entanto, essa literatura não é mais intensamente divulgada devido à falta de incentivo na formação de professores e, principalmente, limitações editoriais.
O racismo e a falta de identificação com a ancestralidade negra influenciam essa realidade que faz o brasileiro preferir a literatura que vem principalmente da Europa e dos Estados Unidos?
Existe, sim, no Brasil, o racismo contra os povos afro-brasileiros e africanos. Isso é perceptível na política, na cultura, na literatura, no cinema, no teatro e na pouca evidência que era dada até há pouco tempo nos papéis desempenhados pelos negros nas novelas e nas propagandas. Esta realidade televisiva, especialmente, está em transformação e hoje é possível ver o negro assumindo protagonismo em novelas, filmes e programas televisivos. No entanto, no âmbito da literatura, o racismo não é a razão principal da prevalência das literaturas americana e europeia sobre a literatura africana quando se fala em consumo na sociedade brasileira. As literaturas europeia e americana têm uma longa tradição, diferentemente da literatura africana que é relativamente jovem. Nesse aspecto, surge a questão editorial que promove produtos europeus e americanos em detrimento da literatura africana, e não só a de língua portuguesa, haja vista a pouca visibilidade que tem escritores africanos ganhadores de Prêmios Nobel, como Nadine Gordimer e J. M. Coetzee (ambos sul-africanos com obra em inglês). No entanto, na última década, muitos escritores africanos de língua portuguesa estão sendo publicados no Brasil, especialmente pela trilha aberta pelo moçambicano Mia Couto e mais recentemente pela nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. Merecem destaque os filósofos Souleymane Bachir Diagne (senegalês), Kwame Anthony Appiah (ganês) e Achille Mbembe (camaronês) por sua grande influência no pensamento atual.
Seu livro apresenta fábulas tradicionais africanas ao leitor brasileiro. Quais são as principais características dessa particularidade literária?
As fábulas são subgêneros narrativos e podem ser eruditas, quando têm autoria, como por exemplo, as fábulas de Fedro, e populares quando são transmitidas na oralidade e de forma anônima. Quando essas fábulas anônimas são recolhidas da oralidade e reescritas de forma literária passam a ter autoria. As fábulas africanas geralmente são mais longas, com muitas peripécias, protagonizadas geralmente por animais falantes e com outras características humanas, e os ensinamentos morais são diluídos ao longo da trama. Algumas dão explicações sobre determinados fenômenos, acontecimentos, eventos ou comportamentos do mundo animal ou humano. Exemplos: por que os cachorros se cheiram uns aos outros, por que o coelho não tem mais amizade com o gato do mato etc. Algumas fábulas trazem também canções e associam provérbios, uma forma adicional de transmissão de conhecimento.
Quais lições podemos tirar das fábulas africanas nessa era de contestação do valor da globalização e de reflexão a respeito do futuro da humanidade?
Não somente fábulas, mas também contos e lendas e outras narrativas sobre acontecimentos e eventos das comunidades são contados oralmente nas sociedades africanas, transmitindo conhecimentos, perpetuando a memória e estreitando laços comunitários. Em tempos de globalização, em que a contação de histórias perde espaço diante dos videogames, aplicativos, filmes, jogos eletrônicos, desenhos, novelas, streaming etc., manter a tradição de contar de histórias é muito salutar e prazeroso, pois aproxima as pessoas, estimula as crianças, exercita a linguagem e abre o imaginário, além de transmitir conhecimentos. O isolamento social pelo qual estamos passando, em função da covid-19, proporciona boa oportunidade para as famílias brasileiras resgatarem essa prática social, dando chance às crianças de inaugurarem ou aprofundarem laços com o continente africano por intermédio de fábulas, contos e lendas.