Ironia: jogadora compulsiva é pessoa mais sensata da novela
Silvana esbanja coerência de atitudes enquanto não enxerga o próprio vício em ‘A Força do Querer’
Grande atriz que é, Lilia Cabral dá show de atuação até em cenas curtas e com poucos diálogos.
A expressividade facial transmite a convulsão de sentimentos que tomam sua personagem, a arquiteta Silvana de ‘A Força do Querer’.
Trata-se de uma compulsiva por jogo que não admite a dependência que a corrói por dentro e coloca em risco a relação com a filha, Simone (Juliana Paiva), e o casamento com Eurico (Humberto Martins).
Sensível e equilibrada, a jovem tenta ajudar a mãe fazendo inúmeros alertas em relação à necessidade de tratamento contra a ludomania, nome científico do vício em jogar.
Horrorizada com as reprimendas da filha, Silvana se nega a reconhecer o transtorno patológico e ainda se coloca como vítima de incompreensão. “Não sou viciada, paro de jogar quanto quiser”, repete à exaustão.
A empregada e cúmplice nas mentiras, Dita (Karla Karenina, em excelente performance), também tenta convencer a patroa a parar de enganar a si mesma e buscar ajuda especializada. Igualmente em vão.
Eurico, o marido turrão, já fez inúmeras ameaças de separar-se caso Silvana se entregue à jogatina. Cego por sua ignorância, não percebe que a mulher a quem tanto ama jamais deixou de arriscar a dignidade nas mesas de poker.
Nos próximos capítulos, a arquiteta terá o apartamento invadido por agiota a quem deve dinheiro. Semanas atrás, ficou refém de jogadores por não ter como pagar uma dívida na hora.
Seu carro de luxo foi consumido pelo vício e ela até falsificou a assinatura de Eurico para retirar altas quantias de uma conta da empresa da família. A dependência a fez perder a ética e o senso de autopreservação.
Contudo, diante de problemas alheios, Silvana é a personificação da coerência. Enxerga além das aparências e dá conselhos sábios.
Um exemplo é o acolhimento da sobrinha, Ivana (Carol Duarte), que foi rejeitada pelos pais ao se assumir transexual e adotar o nome Ivan.
A arquiteta obrigou o marido a contratá-lo como jardineiro para que o rapaz tivesse como sobreviver sozinho. Ao mesmo tempo, fez o possível para convencer a intolerante Joyce (Maria Fernanda Cândido) a não rejeitar a filha trans.
Em outro momento, a personagem mostrou a capacidade de empatia ao acolher Bibi (Juliana Paes) em sua casa, para que a ‘baronesa do crime’ não fosse detida pela polícia.
Foi uma retribuição por ter sido salva pela ex-estudante de Direito do cativeiro onde foi mantida após perder uma pequena fortuna numa noite de jogo clandestino.
E assim, tropeçando na própria dependência e, ao mesmo tempo, ajudando pessoas ao seu redor, Silvana se tornou uma das personagens mais interessantes e críveis de ‘A Força do Querer’.
Ela é como a maioria de nós: imperfeita, ambígua, frágil e também forte, autodestrutiva e altruísta. A contradição em pessoa.
O talento e o carisma de Lília Cabral, no auge da maturidade artística aos 60 anos, fazem um tipo com aspecto às vezes tão sombrio como Silvana despertar a compreensão e a torcida dos telespectadores.