Jô riu de si mesmo, do politicamente correto e do Brasil
Multiartista, ele usou a comédia para fazer crítica social e transformou o talk show em um formato adorado pelo público
Em 1993, ao ser entrevistado no ‘Roda Viva’, Chico Anysio (1931-2012) disse lamentar que Jô Soares tivesse abandonado os programas de humor para se dedicar às entrevistas.
Os dois foram de amigos a rivais. Havia uma competição, alimentada por ambos e pela imprensa, sobre quem era o maior humorista do Brasil.
Jô Soares se destacou com seu olhar crítico a respeito do País. Debochou de preconceitos e, ao mesmo tempo, dos excessos do politicamente correto.
Certos personagens caricaturais, como o Capitão Gay, provocariam reações coléricas hoje em dia. Aliás, Jô usava o super-herói afeminado para rir do boato de que era homossexual.
Dorival era o pai que queria ‘consertar’ os filhos gays dos amigos sem se dar conta de que tinha um herdeiro LGBT. O bordão “Tem pai que é cego” faz sucesso até hoje.
Contra a gordofobia, ele criou vários tipos, como a ‘rata de academia’ Ciça, que se achava mais em forma e sexy do que a magérrima Cláudia Raia.
Politizado, Jô atacava o autoritarismo e as mamatas dos políticos com personagens como Sebá, Julio Flores, Venturoso e o General, eternamente inconformado com o fim da ditadura.
Dom Casqueta era um mafioso revoltado com a desorganização do Brasil, onde até ladrões de casaca têm dificuldade de roubar. O Reizinho personificava a arrogância de quem se achava melhor do que todos por ter algum poder.
As feministas do momento ficariam horrorizadas com o sarcasmo de Dalva Mascarenhas, que usava terno, bigode e brincos vistosos. Os árbitros protestariam com o Juiz Ladrão.
Jô também ironizava o próprio meio televisivo. Quem não lembra da simpática Vovó Nana, doida para aparecer diante das câmeras? Era uma cutucada em quem tem obsessão em ser famoso. Fez tanto sucesso que até foi ao ‘Show de Calouros’ de Silvio Santos.
O contrarregra Piloto, que tomava conta de um estúdio de TV, lançou um bordão que virou nome de quadro do ‘Vídeo Show’: “Falha nossa!”
Quando fez a transição para o talk show, Jô consolidou na televisão brasileira o formato de maior prestígio do horário nobre dos canais norte-americanos.
Como entrevistador, ele agradava e também provocava irritação quando falava mais do que o convidado, fazia questão de demonstrar seus conhecimentos sobre o tema ou não disfarçava o desinteresse pela pessoa sentada ao seu lado.
Influenciou vários comediantes e jornalistas a investirem em atrações de bate-papo, mas nenhum teve o mesmo impacto do ‘Jô Onze e Meia’, no SBT (1988-1999), e do ‘Programa do Jô’ (2000-2016), na Globo.
Assim como são insuperáveis algumas das atrações humorísticas estreladas por ele, a exemplo do ‘Faça Humor, Não Faça Guerra’ (1971-1973) e ‘Viva o Gordo’ (1981-1987).
Importante ressaltar a presença de Jô como comentarista do cotidiano no ‘Jornal da Globo’, com seu olhar certeiro a respeito das involuções da sociedade, e da coluna de humor mantida por vários anos na ‘Veja’.
Ele foi também ator de cinema, diretor de filmes, autor teatral e um premiado escritor de romances. ‘O Xangô de Baker Street’, lançado em 1995, se tornou um fenômeno de vendas aqui e em outros países.
Seu último trabalho foi o espetáculo solo ‘O Livro ao Vivo’, em 2019. A pandemia interrompeu alguns projetos. Defensor da vacina, ele estava animado com a retomada das produções teatrais após o controle da pandemia. Não teve tempo de voltar aos palcos.
Hoje, o Brasil tem um motivo a mais para não rir.