Jornalistas contam em livro a cobertura dos ataques em Paris
Naquela noite de horror, em 13 de novembro de 2015, enquanto a maioria das pessoas fugia dos locais dos atentados realizados por terroristas do Estado Islâmico no coração de Paris, dois jornalistas corriam na direção contrária, rumo ao epicentro da notícia.
Marcos Clementino, correspondente da RedeTV! à época, e Liz Fere, produtora de jornalismo da Globo, uniram-se meses depois da tragédia que matou 130 pessoas para escrever o livro 'Paris, Sexta-feira 13', da Editora Realejo.
Além de relatar as experiências profissionais e humanas de participar de um dos piores momentos da história recente, eles apresentam análises de outros jornalistas e de alguns dos maiores pensadores brasileiros da atualidade.
Os autores e a editora lançaram uma campanha de financiamento coletivo (), com doações entre 50 reais e 350 reais para pessoas físicas.
Entre as recompensas estão o livro autografado, nome nos agradecimentos e um curso de vídeorreportagem com Clementino e Fere. Todos os participantes dessa ação de crowdfunding irão concorrer a uma viagem a Paris.
Marcos Clementino e Liz Fere conversam com o blog a respeito do que viveram naquelas horas de terror e a trajetória do livro.
Onde estavam e o que faziam quando souberam dos ataques?
Marcos Clementino - Eu estava na sala do meu apartamento com a televisão ligada e conectado à internet como sempre fazia, rotineiramente, enquanto arrumava as malas para viajar. No dia seguinte começaria o G20 em Antália, na Turquia. A minha missão era seguir os passos da então presidente Dilma Rousseff. Antes mesmo de a imprensa francesa noticiar o fato, recebi uma mensagem de um amigo francês no meu WhatsApp, sobre um tiroteio próximo ao Stade de France (fato que não ocorreu, lá aconteceram três explosões). Aquela informação, mesmo desencontrada, acendeu um sinal de alerta e instigou a minha curiosidade pelo fato de não haver tiroteios em Paris com a mesma frequência que acontece em São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo. Ainda mais durante um jogo entre França e Alemanha. Apostei na minha intuição e fui checar. Durante o percurso, de dentro do táxi, já tinha a confirmação que Paris estava em apuros pelo número de carros de polícia com as sirenes ligadas e em todas as direções. Similar a um formigueiro quando é atingido. Em seguida, o rádio do carro já falava na suspeita de um atentado. Fomos parados em uma barreira policial e ficamos sob a mira das armas da polícia francesa que estava com os ânimos alterados. Suspeitavam de tudo e de todos. Mesmo apresentando a credencial de jornalista, não nos deixaram avançar. Tive que caminhar cerca de 3 km com equipamentos de filmagem para acessar o estádio, que estava bloqueado. Tive, porém, a sorte de chegar em frente aos portões de entrada com muito esforço e sempre procurando caminhos alternativos. Quando cheguei ao estádio, não tinha mais dúvidas: tratava-se de um atentado terrorista e era mais grave do que eu tinha imaginado. Não hesitei em combinar com a redação para entrar ao vivo no meio daquele caos.
Liz Fere - Estava em casa (moro perto da casa de shows Bataclan), trocando mensagens com uma amiga francesa para saber se iríamos tomar uma taça de vinho no bar que costumávamos ir. Quando observei a chegada de um alerta de agência de notícias falando em tiroteios em cafés parisienses. No primeiro momento cheguei a não acreditar no que estava lendo, pensei que fosse um engano. Depois do segundo alerta entrei com contato com o Fabrizio Rosa, cinegrafista que trabalhava comigo. Decidimos nos encontrar o mais próximo possível do Bataclan, local onde chegaríamos com mais facilidade. Fabrizio e eu pegamos um táxi que nos levou até parte do trajeto, fomos barrados pela polícia várias vezes e resolvemos ir caminhando. Fomos novamente barrados no Boulevard Voltaire, de onde eu tentava entrar ao vivo pelo telefone.
Naquele momento, vocês trabalharam num clima de extrema tensão, com a possibilidade de novos ataques e informações desencontradas. Como foi lidar com a situação?
Marcos Clementino - Não dá pra negar que existe tensão. Durante o percurso o medo foi grande. Mas quando cheguei ao Stade de France pensei comigo: "o que tinha pra acontecer já aconteceu". Aliado a isso, a experiência de vida de ter nascido e crescido na periferia de São Paulo (no Jardim Rosana, distrito de Campo Limpo, um dos locais mais perigosos da cidade em meio a situações complicadas de violência), fez a minha preocupação diminuir em relação à minha integridade física. O foco em busca da notícia também ajudava a aliviar a tensão. Geralmente só consigo raciocinar a proporção do perigo depois que termino o trabalho. Com tantas informações desencontradas, a minha estratégia foi noticiar menos e com mais precisão. É preciso ser responsável para selecionar o que de fato é verdade. Nas primeiras entradas ao vivo evitei passar o número de mortos e feridos, optei em descrever o cenário em torno do estádio e dentro dele. Nos intervalos entre um link e outro, eu procurava por testemunhas e autoridades para me abastecer de informações. O problema é que a maioria dos policiais também não sabia o que estava acontecendo, o que dificultava na apuração. Daí fiquei sabendo de outros ataques em andamento na cidade. A tensão e o medo voltaram. Aquilo não tinha acabado e não tinha hora pra acabar. Eu corria risco.
Liz Fere - A minha preocupação era grande, visto a dificuldade que tínhamos em obter informações precisas e confiáveis. Tudo mudava muito rápido e as coisas aconteciam em tempo real. Na medida em que transmitíamos, as coisas evoluíam de maneira assustadora. Tentei manter a calma e não deixar a emoção tomar conta, tive medo pela minha vida, pensei (por alguns segundos) que minha família poderia estar preocupada no Brasil. Mas logo o dever jornalístico tomou conta e durante toda a cobertura evitei pensar em tudo que pudesse me distrair. O duro foi o vazio depois da cobertura finalizada.
Como surgiu a ideia do livro?
Marcos Clementino - O que me levou a escrever um livro foi a curiosidade de amigos, familiares, colegas de trabalho e desconhecidos que perguntavam sobre o tema e os bastidores daquela cobertura. Quando eu começava a contar, sempre queriam saber mais e mais. Alguns diziam: "cara, isso dá um livro. Por que você não escreve?". Então decidi escrevê-lo e convidar a competente Liz Fere para complementar o projeto.
Como estabeleceram a estrutura narrativa? Escreveram sempre juntos?
Marcos Clementino - Liguei para a Liz, falei sobre a ideia e a convidei para fazer parte. Ela topou na hora. Um dia depois, encaminhei um e-mail com um esboço da forma como eu imaginava o livro. A Liz acrescentou ideias, discutimos tudo e estabelecemos um cronograma para produção e a tarefa de cada um. Cada um ficou responsável por uma parte do livro, dividimos as tarefas: capítulos, personagens da tragédia, pesquisa, depoimentos e entrevistas. Após a conclusão de cada tarefa, trocávamos os arquivos e cada um avaliava o material do outro.
Como foi relembrar os detalhes do que viram e sentiram?
Marcos Clementino - Aos finais de semana, quando eu costumava dedicar 14 horas por dia no projeto, tinha dificuldades para dormir, pois a mente ficava super acelerada. E quando o sono chegava vinham sonhos esquisitos que me remetiam outra vez para as cenas dos ataques. Em certos trechos do livro, os olhos enchiam de lágrima. Não pelos apuros que passei como jornalista, mas pelo sofrimento das vítimas e a dor dos familiares.
Liz Fere - Relembrar detalhes do que vivemos naquela noite foi muito angustiante. Marcos foi mais forte, ele me apoiou para que tivéssemos o recuo necessário para tratar do assunto sob o ângulo jornalístico e informativo, foi assim que mergulhei na escrita do livro, pensando em jovens jornalistas e interessados pelo assunto, que pudessem aproveitar a experiência de dois jornalistas internacionais em uma cobertura desta amplitude.
A obra tem o prefácio de Daniel Psenny, repórter do Le Monde que filmou clientes fugindo pela janela do Bataclan. Como surgiu a ideia de tê-lo no livro?
Marcos Clementino - Não conhecíamos o Daniel Psenny. A princípio o colocamos na lista de personagens para contar a sua história. O procuramos e ele topou ceder a entrevista. Depois do seu depoimento e a pesquisa que fizemos nas publicações dos jornais franceses, nos demos conta da importância da figura do Daniel. Ao mesmo tempo ele foi jornalista (porque registrou o evento com um celular), herói (porque desceu do seu apartamento para ajudar e dar abrigo às vitimas) e vítima (já que foi alvejado com um tiro de AK-47). Como praxe, queríamos um jornalista experiente que conhecesse o nosso trabalho. Alguém com experiência internacional. Tínhamos dois nomes em mente. Mas a essência do Daniel Psenny fez com que mudássemos de ideia. O convidamos para escrever o prefácio. E, de quebra, ele virá ao Brasil para o lançamento.
O livro conta com a colaboração de grandes nomes do telejornalismo e da intelectualidade. Como foi a seleção dos nomes?
Marcos Clementino - Os nomes foram selecionados com muito critério. Cada um tinha que encaixar em determinado capítulo. Da parte dos intelectuais, a ideia foi trazer especialistas consagrados e com opinião formada para compartilhar suas ideias sobre o tema central. Em todos os casos, são profissionais que eu acompanho há algum tempo. Alguns deles, colegas de TV Cultura ou antigos entrevistados para outras matérias que produzi. Quanto aos jornalistas, selecionamos basicamente aqueles com credibilidade e experiência em coberturas internacionais. Sobretudo, aqueles que trabalharam naquela cobertura. Da lista que tínhamos em mente, apenas uma pessoa não pôde participar por questões particulares. A maioria abraçou o projeto na hora. Embora a Liz e eu sejamos os autores do livro, não tínhamos a vaidade de ser donos da história. Queríamos que outros colegas da imprensa compartilhassem suas experiências. O objetivo é mostrar o trabalho do correspondente internacional com a tragédia em Paris como pano de fundo.
Como surgiu a ideia da campanha no Kickante?
Marcos Clementino - A editora Realejo é uma das pioneiras em lançamento via financiamento coletivo e sugeriu uma campanha para o nosso livro. A Realejo realizou com sucesso projetos do gênero a exemplo do livro da banda Charlie Brown Jr, um livro do Xico Sá, entre outros títulos e autores importantes. A Liz e eu avaliamos e decidimos apostar nessa proposta inovadora, isso porque a própria campanha já mede o interesse de leitores sobre o tema e, sobretudo, o nosso livro. Aliás, o conceito de livro vem mudando. Não são os autores os donos, os leitores também participam e colaboram. Quanto a recompensa de viajar para Paris com tudo pago e conhecer o trabalho de correspondente internacionais, nós pensamos em presentear principalmente futuros jornalistas (estudantes e recém-formados), sem deixar de lado o público em geral que tem interesse no tema. Na minha época de estudante e início de carreira não tive essa oportunidade. Além disso, o mercado é muito fechado para fomentar o sonho desses jovens comunicadores em potencial. Daí o sorteado vai ter uma chance que faculdade (ou empresa) nenhuma oferece. Aprendizado in loco e no exterior.
A experiência da cobertura dos atentados mudou a relação de vocês com Paris?
Marcos Clementino - Sim, caiu a ficha: a Cidade Luz também tem momentos de trevas. Contudo, mesmo em episódios fatídicos que sangram e deixam cicatrizes como o daquela 'sexta-feira 13', o brilho de Paris se sobressai. Reluzente, charmosa, chique e cheio de energia, o berço da civilização sempre estará acima do terror e do medo. Muda também a forma de enxergar os franceses, carregados de rótulos e estereótipos como o de povo frio, arrogante e mal-educado. O que vi foi muita generosidade de um povo solidário, sensível e guerreiro ao mesmo tempo.
Liz Fere - Sim e muito. Eu moro em Paris desde 2001, sempre considerei um lugar ideal para viver, uma cidade segura, além de encantadora. Porém, ao longo dos anos, observei o aumento da intolerância racial e religiosa potencializada pelo aumento da crise econômica. Já não penso mais em Paris como cidade ideal para se viver bem, a tensão é presente nas ruas, nas expressões das pessoas, no aumento da desconfiança e do medo de novos ataques. O receio de novos atentados é permanente.
Nota do editor: entre os colaboradores presentes no livro estão Mario Sergio Cortella (filósofo), Arlene Clemesha (historiadora), Heni Ozi Cukier (cientista político), Dra. Marlize A. Bassani (doutora em psicologia), Luiz Felipe Pondé (filósofo), Maria Edileuza Fontenele Reis (Embaixadora do Brasil em Paris), Vladir Lemos (jornalista TV Cultura), José Roberto Burnier (Jornalista TV Globo), Sonia Blota (jornalista TV Bandeirantes), Daniela Fernandes (jornalista BBC Brasil), Marcelo Medeiros (jornalista RedeTV!), Mauro Tagliaferri (jornalista RedeTV!), Jamil Chade (jornalista O Estado de São Paulo), Priscila Medina (jornalista RedeTV!), Fernando Henrique de Oliveira (produtor/cinegrafista TV Bandeirantes), Lúcia Müzell (jornalista GloboNews), Andrei Netto (jornalista O Estado de São Paulo), Ernani Lemos (coordenador de escritório em Londres TV Globo) e Alexandra Loras (jornalista e ex-consulesa da França em São Paulo).