O talento, a lucidez e o olhar matador de Kelner Macêdo
Ator revela força de pensamento ao falar sobre construção de personagem, erotismo, quebra de tabus, superação da pobreza e atitude política
Há atores que não precisam verbalizar. Dizem tudo pelo olhar. Transmitem emoção, dor, desejo, mistério, repulsa. Atraem, assustam, hipnotizam. Kelner Macêdo está nesta categoria de artistas ímpares. Impossível ficar indiferente ao vê-lo em cena.
Ele parece colocar em prática, na vida e na arte, um ensinamento deixado por um de seus autores preferidos, Caio Fernando Abreu. “Se você souber olhar as coisas de um jeito mágico, tudo fica mais bonito.” Diz enxergar a beleza na diversidade de pessoas, gêneros, identidades sexuais, sentimentos e experiências.
Com o frescor da juventude e a clareza dos sábios, Kelner revela nesta entrevista o homem pensante sob a pele de seus personagens na TV e no cinema.
Seu personagem em ‘Verdades Secretas 2’ era um DJ fora do estereótipo. Não era tão liberal quanto se imaginava. Como foi lidar com as contradições do Mark?
É sempre bom para a construção quando me deparo com as contradições do personagem, me traz a possibilidade de cavar as várias camadas de significados dentro dessa personalidade, de voltar e me perguntar de novo o porquê desse comportamento, de duvidar e continuar a buscar, tentando assim alcançar uma maior profundidade em relação ao que o move no mundo. Claro, isso faz várias dúvidas emergirem durante o processo, vários questionamentos vão surgindo, mas, no fim das contas, as perguntas me movem mais do que as respostas, porque me indicam caminhos a buscar. E no caso do Mark, foi um processo de mais perguntas do que respostas, e elas perduraram até o fim das gravações, me fazendo sempre ressignificar as possibilidades de desejo dele, e a desmitificação do estereótipo que se espera de um homem da noite. Um personagem pode ser muito mais do que se espera dele. Acima de tudo, é uma pessoa que está vivendo, sentindo, sendo atravessada pelas experiências, que muda de ideia, que se arrepende e tenta de outro jeito, que sonha, que se frustra, que sente medo e tem coragem. Suscetível às contradições, e acho que isso engrandece essa pesquisa e também aumenta o desafio da busca pelo tom do personagem.
Como foi interpretar um personagem associado ao erótico?
Muito me interessa pensar a energia erótica como uma força propulsora dos corpos, poder deixar que a energia sexual encontre um caminho que vai além do sexo, e se torne força motriz na criação. Essa é uma obra que a tônica principal está na iminência do desejo, do tesão, do sexo, logo temos personagens que se movem a partir dessa força, e o Mark é um deles. Foi um trabalho de dar vazão a todos os desejos, e não julgá-los. Tentar encontrar um afastamento da moral mesmo ela estando tão viva na subjetividade do Mark, e abrir portas para sentimentos complexos que muitas vezes passaram pelo campo da perversão também. Foi um trabalho norteado pela equalização dessa energia, e da busca pelo tom.
Gosta de ser visto como um homem sensual? O assédio faz bem ou incomoda?
Quem só olha a parte de fora deixa passar despercebido o que está dentro e menos aparente. Claro que levar em conta essa consideração de ser um homem sensual massageia o meu ego, mas quando uma aproximação parte única e exclusivamente disto, logo se esvazia. É delicioso receber elogios, se sentir desejado, mas algumas abordagens são muitas vezes evasivas, e se baseiam apenas na sexualização do corpo, e isso é o que incomoda, quando as pessoas olham para você e te reduzem a uma superfície, quando olham para sua liberdade e acham que têm passe livre para tocar, pegar, usar. Claro que tudo depende da abordagem e do que se deseja na aproximação, mas quando cai nesse lugar de objetificação sexual apenas, não me interessa.
Acha importante que a teledramaturgia discuta tabus sobre sexualidade?
Sim, os tabus estão aí para serem discutidos, questionados, e acho que a teledramaturgia tem um espaço de visibilidade potente e abrangente, que chega em lugares muito plurais, e precisa usar disto para trazer à tona outros assuntos e corpos também mais plurais, que representem agora outras parcelas da população que sempre acompanhou suas produções e nunca, ou pouco, se viu representada. Estamos num momento de refazer imaginários, abrir espaços de novas problematizações nas narrativas, de pensar estruturas mais possíveis para o mundo, e espero que cada vez mais esse espaço seja alargado para abarcar outras vivências.
Algum problema com cenas de nudez? Como foi se despir na frente de outros artistas para o clipe ‘Pedrinho’, de Tulipa Ruiz?
Não tenho problemas com a nudez, acho que o corpo do ator está a serviço da obra, e nesse sentido pode vir a ser uma ação revolucionária, pensando no contexto em que vivemos, norteados por uma moral castradora que deseja controlar o poder dos nossos corpos e limitar suas possibilidades. A nudez vem com uma força transformadora que pode romper paradigmas. No caso desse clipe, se trata de uma ode à liberdade, um encontro afetivo entre os nossos corpos em contato. Foi muito bonito ver os corpos florescendo ali, criamos um espaço afetivo de acolhimento e troca, e mesmo os que chegaram inseguros em se despir logo foram se desfazendo das inseguranças e se deixando atravessar por esse encontro. Foi um trabalho transformador pra mim e acredito que para muitos ou para todes que ali estavam.
Muitos artistas têm tido a coragem de assumir que são bissexuais ou gays, e que vivem relacionamentos abertos. O que acha dessa liberdade em um período de pressão conservadora?
Não gosto muito de usar a palavra “assumir”, porque me parece que dá um tom de proibido à relação e/ou à orientação sexual. Tenho preferido usar o “tornar público”, “declarar”, “anunciar”, porque é uma individualidade compartilhada, comunicada. Acho que vivemos um momento em que ainda é importante essa afirmação, esse levantamento de bandeiras para que sejamos considerades, pensades, para trazer visibilidade para a população LGBTQIAP+. Vivemos uma absurda onda de preconceito e intolerância. Avançamos em muitas questões, e retrocedemos em tantas outras com a presença desse atual desgoverno que incita o ódio e a violência. Então acho necessário sim falar, declarar, anunciar, se colocar no mundo! Mas confesso que aguardo e anseio pelo momento em que ninguém precise “assumir” nada referente à própria sexualidade, que as individualidades sejam respeitadas e que caminhemos para outras discussões, para novos pactos, que avancemos finalmente, porque esse assunto já tá velho, é meio absurdo pra mim hoje pensar que ainda estamos tendo que “militar” sobre isso, as existências múltiplas.
A imprensa, as redes sociais e certos fãs costumam especular a respeito da sexualidade dos atores. Isso o incomoda?
Acho que todo mundo merece ter sua privacidade respeitada, não é porque a pessoa é uma figura pública que precisa ter sua vida exposta aos quatro ventos. E existem acontecimentos da vida privada, situações, que não precisam ser compartilhados, que não vão mudar nem acrescentar nada na vida de ninguém porque é um assunto individual, pessoal. E a rede social por sua vez se tornou o tribunal público do julgamento da vida alheia, e é preciso bastante cautela nesse sentido porque tudo se distorce numa velocidade absurda e toma proporções descabidas. Então, acho que é necessário sim ter um espaço de mais respeito com as individualidades.
Como foi voltar a interpretar um gay em ‘Sob Pressão’, na Globo, em momento de recrudescimento da intolerância contra a comunidade LGBTQIAP+ no Brasil?
Eu acho de extrema importância a existência de personagens como o Kléber, na teledramaturgia, nos streamings, no cinema e em todas as plataformas. Precisamos de renovação nas histórias que são contadas, precisamos olhar para outras vivências que fogem dessa normatividade hegemônica. É uma alegria muito grande poder contar essa história e trazer para televisão assuntos e existências tão necessárias para o mundo de hoje. Já me perguntaram se eu não tinha medo de ficar rotulado por fazer personagens gays, pensando em alguns personagens que já interpretei, como o Elias do filme ‘Corpo Elétrico’ (do diretor Marcelo Caetano), o Kléber, O Vini de ‘Todxs Nós’ (série da HBO), e eu fiquei pensando nisso. Acho muito caído pensar na carreira por essa ótica. Alguns atores héteros passam uma existência inteira interpretando personagens héteros e não vejo essa questão surgindo, ninguém pergunta se eles não têm medo de serem estigmatizados por só viverem personagens héteros. Mas é interessante pensar nesses questionamentos, isso só reforça o quão necessário é olhar para as narrativas dos corpos dissidentes, o quanto precisamos cada vez mais trazer essas pautas para o centro das discussões. Vejo essa pergunta imbuída de um preconceito colossal. Eu sou ator, eu me interesso por boas histórias, bons personagens, e me interesso também em criar outros imaginários possíveis sobre os nossos corpos. Claro que não vou passar a vida toda apenas interpretando personagens gays. Gosto de pensar o meu corpo como uma massa de modelar capaz de inúmeros desdobramentos, mas, e se por acaso eu fizesse a escolha de só contar histórias sobre personagens gays, onde estaria o problema aí? Esse questionamento é reflexo do País que vivemos. Temos muitas barreiras a serem derrubadas ainda, muitos muros precisam cair para que cheguemos em um novo pacto social, e poder usar meu corpo para mover minimamente essas estruturas é um deleite e uma realização pra mim. Ah, e podem mandar outros personagens gays que eu vou interpretar com muito amor!
Da pequena Rio Tinto, na Paraíba, para o horário nobre da Globo. O que destaca de melhor e mais difícil na trajetória percorrida até aqui?
Eu tive uma infância pobre, nunca ninguém me falou que era possível ser ator, trabalhar com cinema, televisão, teatro. E eu tive que entender isso sozinho, correr atrás dos meus desejos e construir então minhas próprias oportunidades. Eu trabalho desde os 12 anos de idade, e antes de ser ator eu já trabalhei numa padaria, fui recepcionista, fiz assistência de câmera, cobertura de eventos, animação de festas – da recepção dos convidados à animação – fantasiado de cabeção. Saí da casa da minha avó com 17 anos, então tive que me desdobrar desde cedo pra sobreviver e para construir uma narrativa diferente da que estava “reservada” pra mim. A minha trajetória me ensinou muito até aqui, principalmente a resistir. É preciso resistir para viver de arte no Brasil, e se reinventar sempre, todos os dias, é uma prova de resistência diária, com muitos altos e baixos, com muitas expectativas, com muitos nãos. Sempre foi preciso ter resiliência e não deixar de acreditar que o jogo pode virar, que vai virar. É prova de fogo. Mas como um bom sagitariano, as aventuras e os desafios sempre me moveram. Sigo nisso firme e acreditando em todos os passos que dei pra chegar até aqui e em todos que darei daqui pra frente.
Vivemos em uma sociedade com inegável preconceito contra nordestinos, e a TV costuma estigmatizar atores do Nordeste e com sotaque. O que acha disso?
Acho que isso vem mudando aos poucos, mas ainda temos um longo caminho pela frente. Ainda existe muita xenofobia com atores nordestinos. Existe, por exemplo, uma pressão externa do mercado que te indica o caminho do sotaque neutro. Porém, o caminho do sotaque neutro indicado é a busca pela proximidade dos sotaques paulistano e carioca. Como se fossem os únicos caminhos possíveis. E isso é um reflexo nítido pra mim sobre essa questão. Por isso acho que ainda temos um longo caminho pela frente de descentralização desses poderes. Acho que precisamos reformular, mexer nesses padrões, borrar esses limites instituídos e desmitificar os estereótipos, ganhar e ocupar todos os espaços.
Na sua opinião, todo artista tem a obrigação de se posicionar politicamente na mídia?
Acredito que a existência do artista está intrinsecamente ligada à política, à produção de discursos, ao levantamento de questões. O nosso trabalho maior talvez seja colocar em pauta as questões atuais do nosso tempo, e criar espaços de reflexão, disseminar ideias, então acho importante um posicionamento, principalmente estando no Brasil em 2022, vivendo no atual cenário de precarização e violência. Precisamos usar a voz ativa que temos na sociedade para gerar as microrrevoluções necessárias para fazer a roda do mundo girar por um caminho mais possível. Mas isso é o que eu acredito. Eu tento ser uma voz ativa nos mínimos espaços que tenho. Claro que nunca vamos conseguir abarcar todas as pautas e comprar todas as lutas, mas o que está ao meu alcance eu tento fazer, tento me engajar nas questões que acredito.
Quais personagens da literatura e de clássicos da TV e do cinema gostaria de interpretar?
Eu amo os personagens e as histórias de Caio Fernando Abreu e Clarice Lispector, fico completamente atravessado, assim como recentemente fiquei abismado com a escrita de Itamar Vieira Junior em ‘Torto Arado’. Ficaria extremamente feliz em dar vida a personagens criados por eles. Tem algumas personalidades brasileiras que me enchem os olhos também, e que adoraria contar suas histórias, como Ney Matogrosso, Cazuza, e o próprio Caio Fernando Abreu.