Omissão da Globo no caso Cássia Kis é um golpe no discurso progressista do canal
Emissora preferiu ‘deixar a poeira baixar’ ao invés de se posicionar firmemente contra as manifestações reprováveis da atriz
A notícia de que a Globo vai demitir Cássia Kis após o fim de ‘Travessia’ é fake news.
Ela será apenas mais uma artista a não ter o contrato renovado, como aconteceu com dezenas de outros atores nos últimos anos.
A própria Cássia anunciou, antes da estreia do folhetim das 21h, que esta seria sua última novela.
Na prática, a Globo não impôs nenhuma punição à atriz por sua presença em atos antidemocráticos e as declarações consideradas preconceituosas.
Ex-petista, Kis esteve em pelos menos duas manifestações, no Rio, onde havia cartazes pedindo intervenção militar, o que é proibido pela Constituição.
Em entrevista à bolsonarista Leda Nagle no YouTube, ela deu a entender que os LGBTs são uma ameaça à família tradicional, formada por homem e mulher.
Disse ainda ter conhecimento da existência de “beijódromo” em escolas, onde crianças do mesmo sexo estariam livres para beijar na boca.
Diante de flagrante discurso reacionário, a Globo se calou. Questionada pela imprensa, soltou uma nota protocolar, recurso recorrente de pessoas, empresas e instituições que fogem do debate para não se comprometer.
A emissora falhou de maneira vexatória. Nem parece o mesmo canal que fez oposição em seus telejornais ao radicalismo de Jair Bolsonaro ao longo de quatro anos.
No fim de 2022, a Globo criou uma diretoria de diversidade, comandada por uma executiva negra, para promover o princípio da tolerância entre seus milhares de funcionários e na programação.
Mas na primeira prova de fogo, quando deveria dar uma resposta firme ao extremismo representado por Cássia Kis, a TV optou pela omissão.
Se a cúpula da Globo acreditou que a polêmica cairia no esquecimento, cometeu outro erro. Subestimou a própria classe artística que emprega em sua teledramaturgia.
Cresce o número de atores a se manifestar na mídia e nas redes sociais contra o comportamento de Kis e a ideologia defendida por ela.
Trata-se de um movimento importante de profissionais influentes indignados com o risco à democracia e às minorias marginalizadas.
Cássia Kis foi criticada abertamente por Miguel Falabella, Renata Sorrah, Cláudia Alencar, José de Abreu, Lúcia Veríssimo e Xuxa, entre outros famosos.
Em uma edição ainda inédita do ‘Roda Viva’, da TV Cultura, Luiz Fernando Guimarães também reprova o pensamento retrógrado da atriz convertida em ícone de discípulos da extrema-direita.
Fontes da Globo ouvidas pelo Sala de TV contam que a direção da emissora se esquivou de dar uma resposta dura à Cássia Kis, como uma advertência ou até o afastamento de ‘Travessia’, por temer uma reação violenta de bolsonaristas.
Preferiu pagar o preço – alto, ressalte-se – de ser vista como negligente. Com isso, comprometeu a autoridade moral para criticar os demais brasileiros com mesmo o pensamento anacrônico e potencialmente perigoso da atriz.
A questão envolve vários tipos de ética, especialmente o conceito propagado pelo filósofo alemão Immanuel Kant, em que existe a racionalidade a respeito do lado certo do conflito e da necessidade de agir para defendê-lo.
Ninguém deve proibir a liberdade de opinião de Cássia Kis. Ela, assim como qualquer outra pessoa, pode dizer o que quiser – e, consequentemente, irá arcar com as consequências de eventuais delitos.
O inadmissível é um canal de TV, operando a partir de uma concessão pública e que se pretende pró-democracia, ficar 'em cima do muro' quando há um ataque verbal ou físico contra o Estado de Direito e os direitos civis de qualquer grupo sob frequente ameaça.