Série traz olhar sensível sobre jovens no espectro autista
Filmada na Austrália, nova produção da Netflix 'Amor no Espectro' acompanha jovens adultos em busca de um amor
Esqueça todas as séries de dates que você já viu. A nova produção da Netflix, 'Amor no espectro', retrata muito mais do que os silêncios constrangedores dos primeiros encontros. A série acompanha jovens adultos no espectro autista - condição que envolve, entre muitas outras particularidades, a dificuldade de comunicação e interação social e a presença de comportamentos e interesses repetitivos.
Se já é difícil para nós, os chamados 'neurotípicos' (rótulo dado às pessoas que estão fora do espectro), embarcar nesse mundo de relacionamentos, imagine para eles? Algo simples como se apresentar e perguntar sobre os hobbies da pessoa pode parecer um grande e intransponível obstáculo. E são esses enormes desafios que guiam os cinco episódios da série.
A maioria dos personagens nunca esteve em um encontro e jamais se relacionou romanticamente com alguém. Muitos sequer tiveram um amigo. Como, então, se preparar para o primeiro date de suas vidas? E ainda, acompanhado de uma equipe de filmagem?
Fiquei me perguntando, ao longo dos episódios, se as câmeras não teriam um papel inibidor, se não trariam algo de artificial ao momento. Mas o diretor da série, Cian O’Clery, contou em entrevista a uma revista americana que, na verdade, o oposto aconteceu. Ele disse que a equipe foi como um suporte a mais. Antes de gravar, o diretor conversou com psicólogos, que disseram que ter a companhia dos produtores poderia, inclusive, ser uma vantagem para ajudá-los a dar esse primeiro passo tão assustador.
Michael, 25, é um dos personagens mais engraçados e carismáticos da série. Segundo sua mãe, "toda família deveria ter um Michael". Me lembrou muito o personagem Sam, de ‘Atypical’, série ficcional da Netflix que também aborda o tema. Para ele, o autismo é uma condição neurológica, e as pessoas no espectro apenas aprendem as coisas de uma outra maneira. "Eu vejo mais como um dom", diz. O problema, na sua visão, não é ser autista. O problema é que ele não sabe o que fazer para realizar seu maior sonho: se tornar um marido.
Maddi, 24, outra jovem muito bem humorada, se descreve como uma pessoa independente, engraçada e peculiar. "Só porque estou no espectro, não significa que eu seja burra. Elas falam comigo: Como…. vai….. você? Por favor, né", reclama. Ela imagina seu parceiro ideal como alto, musculoso e rico.
Para ajudá-los nessa tarefa, a série conta com a participação de duas especialistas em relacionamentos que trabalham com pessoas no espectro. Jodi Rodgers, de uma maneira tocante e extremamente empática, conversa com alguns deles para desenhar possíveis cenários e conversas. Junto com a especialista, eles tentam superar uma das características mais presentes do autismo - a falta de habilidade nas interações sociais e a dificuldade de entender as 'entrelinhas'.
Em outro momento, a doutora Elizabeth Laugeson, da Universidade da Califórnia, organiza uma pequena reunião com um grupo de jovens para tentar prepará-los para o tão esperado momento. Na aula, é feita uma simulação de um date, e os 'estudantes' tentam entender o que fazer e o que não fazer em um encontro.
Além de acompanhar os dates, a produção também mostra dois casais já formados que decidiram morar juntos. O mais interessante aqui é observar como esses jovens conseguiram nadar contra a maré e contra todas as estatísticas. Isso porque, para eles, é constantemente dito que eles nunca conseguirão ter um relacionamento e viverão para sempre sob as asas dos pais. E, segundo a doutora Elizabeth, existe um grande equívoco de pensar que as pessoas no espectro estão felizes assim e que não precisam namorar. 'Amor no espectro' mostra que não é bem assim.
Mas se engana quem pensa que todas as pessoas diagnosticadas com autismo apresentam as mesmas características. Mark é apaixonado por dinossauros; Andrew é viciado em quebra-cabeças; Michael coleciona brinquedos; Jimmy gosta de sinuca; Ruth coleciona cartões de visita. O mais impressionante e, por que não, incrível desse 'transtorno' é a imensa diversidade que o caracteriza. Cada pessoa desenvolve seus próprios interesses, geralmente de forma obsessiva, e possui suas particularidades que os tornam únicos. E, afinal, não somos todos assim?
É emocionante observar como o apoio das famílias é crucial para esses jovens, seja dando conselhos amorosos, seja os incentivando para que eles se orgulhem de ser quem são. Em um determinado momento, um pai, com lágrimas com olhos, conta que ouviu do filho que ele 'só queria ser normal' - e esse tipo de comportamento, pelo menos na série, é o que as famílias mais tentam evitar. Para muitos jovens, o ambiente familiar é o único lugar onde eles se sentem confortáveis.
A incompreensão é algo com que eles precisam conviver desde muito cedo. A jovem Chloe, 19 anos, conta que sofreu bullying durante toda a sua vida. Já Olivia, 25, tem uma das falas mais impactantes da série: para ela, viver com autismo é viver "dentro de uma caixa transparente. Ninguém pode te escutar. Você pode bater na parede, mas ninguém pode entrar e você não pode sair. E ninguém pode te entender". É de partir o coração.
Enquanto escrevia este texto, resolvi telefonar para o meu irmão, Leo. Ele tem 19 anos e foi diagnosticado com autismo aos 16 - mas nós já sabíamos desde os 3. Antes classificada como Síndrome de Asperger, hoje em dia essa condição se enquadra dentro do Transtorno do Espectro Autista (TEA). Além das limitações com relação à interação social e dos comportamentos repetitivos, essas pessoas geralmente têm uma inteligência acima da média.
Perguntei para ele o que é autismo. A resposta: uma condição que causa dificuldades em comunicação. Acredito que essa seja a principal característica do meu irmão. Ele tem limitações na fala e dificilmente mantém uma conversa. A não ser que você fale com ele sobre videogames. Ele nunca teve um amigo sequer. E isso me deixa muito triste e me faz pensar em todas as pessoas que, assim como ele, nunca tiveram a oportunidade de mostrar quem são. Você pode ter um universo dentro de você, mas, como disse Olivia, ninguém pode te escutar.
A verdade é que a nossa sociedade tem e sempre teve dificuldade de aceitar o diferente. E o que essa série mostra é que estamos todos buscando as mesmas coisas - ser aceito, compreendido, respeitado e amado. Há, porém, uma crítica a se fazer: cinco episódios são muito pouco para retratar a complexidade de seres tão maravilhosos e sensíveis.
*Como pessoa 'neurotípica', acho importante destacar a visão de uma pessoa autista sobre a produção. Neste artigo da revista TIME, a escritora Sarah Kurchak aborda alguns pontos interessantes que podem passar despercebidos. Entre eles, a falta de diversidade do elenco, composto apenas por pessoas brancas, e o perigo de retratar pessoas autistas de uma forma infantilizada.