Sete erros fazem de ‘Travessia’ uma novela problemática e de difícil solução
Folhetim das 21h decepciona enquanto a elogiada ‘Todas as Flores’ estimula muita gente a trocar a TV aberta pelo streaming
Com 1 mês no ar, ‘Travessia’ falha em despertar empolgação no público e registra audiência abaixo do esperado.
A novela de Gloria Perez apresenta defeitos gritantes com improvável solução rápida. Uma tempestade perfeita que preocupa a Globo.
Trama ineficaz – Em tempos de tantas fake news, a autora apostou na deepfake que produziu uma injustiça contra a batalhadora Brisa (Lucy Alves). As mentiras virtuais geraram tantas manchetes e aborrecimentos ao longo da campanha eleitoral que parece ter havido saturação do tema. O noveleiro demonstra indiferença. Não se compadece com o sofrimento produzido pelo crime cibernético. A personagem não consegue estabelecer uma ligação emocional forte com o público.
Protagonista apagada – Brisa é tão sem brilho que ofuscou o carisma de sua intérprete, a radiante Lucy Alves. Com poucas falas, ingenuidade irritante e ações incompreensíveis (como aceitar que ela fique incomunicável se poderia usar as redes sociais para fazer contato com parentes e amigos?), não desperta empatia no telespectador. Na maioria das cenas, Brisa parece perdida no mundo. Faltam atitudes firmes e a sede de justiça que faz o telespectador oferecer a mão a uma heroína.
Química insuficiente – Lucy Alves e Chay Suede são lindos e naturalmente sedutores. Formariam um casal irresistível. Mas Brisa e Ari carecem de paixão convincente. Algumas cenas de sexo suscitaram euforia, porém, no dia a dia, o relacionamento é gélido. O fato de Ari ser dúbio (vilão ou anti-herói?) também contribui para o desinteresse do noveleiro. Difícil torcer pelo casal insosso.
Ausência de humor – Intensos, os folhetins de Gloria Perez sempre tiveram o necessário alívio cômico. Personagens divertidos encantaram o público, como o Lulu (Eri Johnson) de ‘Barriga de Aluguel’, a Nazira (Eliane Giardini) e a Dona Jura (Solange Couto) de ‘O Clone’, a Norminha (Dira Paes) de ‘Caminho das Índias’ e a Edinalva (Zezé Polessa) de ‘A Força do Querer’. Falta em ‘Travessia’ o escapismo baseado no bom humor em contraponto a tantas tramas pesadas. Os únicos momentos realmente divertidos são os embates entre a delegada Helô (Giovanna Antonelli) e seu ex, Stênio (Alexandre Nero), personagens ‘importados’ da novela ‘Salve Jorge’.
Aposta equivocada – Escalar a inexperiente Jade Picon para uma personagem importante se revelou um erro. A influenciadora e ex-BBB22 não entrega uma atuação consistente. Faltou tempo e treinamento para se preparar. A antipatia do público por sua participação no reality show, de onde saiu como vilã, foi automaticamente transferida para Chiara, uma jovem fútil e arrogante. Ninguém na Globo deduziu o óbvio: era cedo demais para colocar Jade em um papel de tamanho destaque e vivendo um tipo tão intragável.
Politização indevida – A polarização na política se refletiu na novela. Parte da internet criou ranço por Gloria Perez, vista como bolsonarista ‘sigilosa’ por conta dos posts que curte nas redes sociais, e também pelos atores Humberto Martins (Guerra) e Cássia Kis (Cidália), apoiadores declarados do presidente. Não é possível apontar um boicote organizado, mas há visível levante on-line contra ‘Travessia’ devido a essa contaminação ideológica. A novela acabou afetada pela guerra entre bolsonaristas e lulistas. Autores e atores têm o direito de se expressar politicamente como qualquer outro cidadão. Precisam estar cientes das possíveis consequências para a carreira e o trabalho do momento.
Polêmica ofuscante – Na imprensa e nas redes sociais (o melhor termômetro do sucesso ou fracasso de uma produção de TV), um dos assuntos do momento é o futuro de Cássia Kis. Após dar declarações consideradas homofóbicas em uma entrevista, ela participou de dois atos, no Rio, onde se pregou intervenção militar para impedir a posse de Lula. Os episódios deixaram a Globo pressionada a advertir ou punir a artista. A emissora investe pesado na imagem de empresa defensora da diversidade (racial e sexual) e agora vê uma contratada ofuscando seu principal produto, a novela das 21h, com palavras e atitudes inaceitáveis. ‘Travessia’ foi atropelada por essa controvérsia e não há sinal de recuperação.