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Van Gogh através de uma câmera pinhole

Fotógrafo Abelardo Morell fotografa a região imortalizada nas pinturas de Van Gogh

7 out 2022 - 10h11
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The Washington Post/ARLES, França - Abelardo Morell estava em uma estrada rural nos arredores de Arles, no sul da França. As cigarras zumbiam com uma intensidade quase alucinatória. Eram 10 da manhã, um dia quente no início de julho. Espalhados por um campo, meia dúzia de ciprestes se erguiam como sentinelas desgrenhadas. Descendo a estrada, um campo com grandes girassóis brilhava em amarelo sob um céu azul.

Foto de Abelardo Morell inspirada em Van Gogh
Foto de Abelardo Morell inspirada em Van Gogh
Foto: Instagram/Abelardo Morell / Estadão

Morell veio para Arles para tirar fotos nos lugares que Vincent van Gogh pintou há 130 anos. Mas, mesmo em meio à amada paisagem provençal do pintor, ele parecia inabalável.

Lidar com Van Gogh requer ousadia. A vida do holandês foi tão completamente cooptada pela cultura de massa (na forma de canções pop açucaradas, filmes de Hollywood e, mais recentemente, através de várias exposições de realidade virtual que tentam dar vida às suas pinturas) que qualquer artista sério lidando com Van Gogh está flertando perigosamente com o kitsch.

Nada disso deteve Morell, um aclamado fotógrafo de 70 anos. "O fato de a maioria das pessoas dizer que é um clichê me encorajou", ele me disse naquele dia na França. "Eu gosto de desafios assim."

Morell nasceu em Cuba e veio para os Estados Unidos quando era adolescente. Ao longo de várias décadas, estabeleceu-se como um fotógrafo renomado, aparecendo regularmente em exposições e coleções de museus em todo o país. Ele é um experimentalista com um senso aguçado e muitas vezes espirituoso não apenas da história da fotografia, mas também da história da arte.

O método de Morell, que está em constante evolução, combina habilmente conhecimentos antigos sobre ótica com o equipamento fotográfico mais avançado. Ele encontrou uma maneira de sobrepor vistas poéticas ou espetaculares em superfícies mundanas e indescritíveis (estradas de terra, campos lamacentos, grama seca), incentivando-nos a ver o próprio chão em que andamos com novos olhos. Suas obras combinam decisões intencionais com efeitos do acaso. O melhor de tudo é que elas reanimam um diálogo entre fotografia e pintura que parecia ter chegado ao auge no século XIX.

Este ano, Morell queria usar Van Gogh como uma espécie de meio em seu processo. Ele não tinha ideia do que sairia disso.

Quando Van Gogh, de 34 anos, se mudou de Paris para Arles no início de 1888 na esperança de estabelecer uma comunidade de artistas, ele caminhou pelos arredores da cidade carregando nas costas tudo o que precisava para pintar ao ar livre: um cavalete dobrável, tela, pincéis e tubos de tinta. Ele estava muito sozinho.

Morell, ao contrário, veio de Boston para Arles, via Lisboa e Marselha, acompanhado de sua esposa, Lisa McElaney, seu assistente, Max Labelle, seu amigo John Spritz e seus dois sócios. Os seis se estabeleceram em um Airbnb do outro lado do Rio Ródano da cidade velha, com seu coliseu romano e ruas estreitas. Quando Morell saiu com Labelle e Spritz para tirar fotos, eles carregaram um carro alugado com um tripé que tinha um dispositivo como um periscópio, uma câmera digital, um laptop e um grande pedaço de tecido preto.

O tecido preto era importante. Morell precisava dele para eliminar o máximo de luz possível porque ele faz fotografias usando uma "câmera escura" - uma sala escura.

O primeiro relato escrito de uma câmera escura foi fornecido pelo filósofo chinês Mo-tzu por volta de 400 a.C. Mo-tzu descreveu como a luz de um objeto iluminado que passou por um pequeno orifício em uma sala escura projetou uma imagem invertida desse objeto dentro da sala. Hoje, uma das primeiras coisas que muitos estudantes de fotografia aprendem é como escurecer uma sala para criar uma câmera escura - ou (mesmo princípio) uma câmera pinhole. E foi assim que Morell, que começou como fotógrafo de rua em Nova York, começou a trabalhar dessa maneira.

No início dos anos 1990, querendo demonstrar os fundamentos da fotografia para alunos de um curso, Morell colocou uma caixa de papelão que uma vez conteve garrafas de vermute doce em uma mesa. Ele fez um buraco em um lado e inseriu uma lente. Ele colocou uma lâmpada elétrica nua em um suporte ao lado da caixa e, quando a ligou, a lâmpada foi projetada pela lente na parede interna da caixa. Morell então fotografou a configuração, mostrando tanto a lâmpada real (quase esbranquiçada e espectral por causa do longo tempo de exposição) quanto sua projeção dentro da caixa (comparativamente de aspecto real, com seu filamento brilhante claramente visível).

Intrigado com essa estranha inversão de realidade tangível e projeção fotográfica, Morell passou a fazer dezenas de fotografias de espaços que ele havia convertido em câmeras escuras. Ele fotografou a vista do outro lado da rua de sua antiga casa em Brookline, Massachusetts, projetada no quarto cheio de brinquedos de seu filho. Ele mostrou o caos visual da Times Square projetado nas paredes e na cama de um quarto de hotel. Ele fez trabalhos semelhantes com espaços em Paris, Londres, Florença e St. Louis.

Então, por volta de 2008, Morell percebeu que não precisava de uma sala concreta e preexistente para criar uma câmera escura. Ele poderia usar uma tenda forrada com tecido escuro ("quanto mais escuro estiver lá, mais vívida a imagem se torna", explicou), usando um periscópio e lentes para projetar a paisagem ao redor no chão abaixo. A "câmera-tenda", como Morell a chamava, significava que ele poderia levar sua técnica para qualquer lugar. E com isso, um mundo de possibilidades se abriu.

Fora de Arles, naquele dia de verão, Labelle, um fotógrafo talentoso, estava aumentando as pernas de um tripé. Os pássaros traziam uma melodia intermitente ao zumbido dos insetos e de um trator distante. Era difícil combinar a calma profunda do cenário com a imagem popular de Van Gogh pintando em um frenesi agitado, perseguido por demônios psicológicos.

"Ele andava muito", disse Morell sobre o artista. "Eu acho que ele estava frequentemente em estado de meditação com a paisagem. Ele pintava rapidamente. Mas não era um caso de 'eu vou me matar, é melhor eu me apressar e pintar isso'." Era apenas uma necessidade intensa de mostrar o mundo como ele o via."

Morell e Spritz vestiam camisas azuis e, à luz da manhã, pareciam sobrenaturalmente nítidos contra o intenso céu azul provençal. Comentei sobre isso, e Spritz, que é amigo de Morell há meio século, disse: "Van Gogh teria adorado".

"Ele teria vestido amarelo", argumentou Morell.

"Ele provavelmente tinha um guarda-roupa inteiro de camisas amarelas", disse Spritz.

"E todas Prada."

"Certo. Ele ligava bastante para merchandising", brincou Spritz.

Quando tudo ficou pronto, era hora de acionar a exposição - neste caso 30 segundos. A brincadeira cessou com o passar dos segundos. Havia apenas o pulsar das cigarras./TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

Estadão
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