5 efeitos inesperados da construção do Canal do Panamá
Do desenvolvimento da ilha caribenha de Barbados ao nascimento da empresa de aviação Boeing, a empreitada que é uma das maiores obras de engenharia de todos os tempos gerou consequências que vão muito além do transporte marítimo de cargas.
Inaugurado há mais de um século, em 15 de agosto de 1914, o Canal do Panamá foi a maior obra de engenharia de sua época - e uma das mais ambiciosas de todos os tempos.
A passagem, que liga os oceanos Atlântico e Pacífico, encurtou as rotas marítimas entre portos em diversas regiões e revolucionou o comércio mundial.
Mas seu impacto vai muito além do transporte marítimo de cargas.
Da independência do Panamá da Colômbia e o desenvolvimento da ilha caribenha de Barbados ao nascimento da empresa de aviação Boeing no noroeste dos Estados Unidos, a empreitada gerou uma série de consequências inesperadas, destaca Noel Maurer, um dos autores do livro The Big Ditch ("O grande fosso", em tradução livre), que conta a história política e econômica do Canal do Panamá.
Conheça, a seguir, cinco delas.
1. Um novo país na América Central
O Panamá foi, por muito tempo, uma província da Colômbia. Sua independência se tornou realidade em novembro de 1903, graças ao interesse norte-americano pelo projeto do canal.
O governo dos Estados Unidos já havia adquirido os direitos da companhia francesa, proprietária da primeira concessão, mas não conseguia chegar a um acordo satisfatório com as autoridades colombianas.
O presidente americano Theodore Roosevelt (1858-1919) decidiu resolver o impasse apoiando as pretensões de independência dos habitantes da região, que retribuíram o favor rapidamente com um novo acordo, bastante generoso.
"Não existe nada que indique que, se os Estados Unidos não tivessem ancorado seus navios nas duas costas do Panamá, impedindo a chegada das tropas colombianas, o movimento pela independência do Panamá teria sido bem-sucedido", explica Maurer.
"E é quase 100% certo, tão certo quanto possível ao analisar os documentos históricos, que, se os Estados Unidos não tivessem tomado esta decisão, o Panamá ainda hoje faria parte da Colômbia", declarou o acadêmico à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.
As análises de Maurer em seu livro indicam, entretanto que o novo país por muito tempo não se beneficiou especificamente do canal escavado no seu território. Foi apenas com a entrega da hidrovia ao Estado panamenho, no dia 31 de dezembro de 1999, que a obra passou a ser um verdadeiro motor de desenvolvimento para a nação centro-americana.
Além da receita direta (mais de US$ 8,59 bilhões - cerca de R$ 53 bilhões, do ano 2000 até hoje), o canal gera inúmeras oportunidades.
2. Progresso para uma pequena ilha do Caribe
Os números compilados por Maurer indicam que, surpreendentemente, o maior beneficiário da construção do Canal do Panamá fica a cerca de 2,3 mil km de distância para o leste, na ilha de Barbados.
Segundo dados do Banco Mundial, a ilha tem um PIB per capita de cerca de US$ 24 mil (cerca de R$ 148 mil), muito acima dos seus vizinhos do Caribe, como a Jamaica e o Haiti.
Isso se deve, em grande parte, à construção do canal. Foi em Barbados que os Estados Unidos encontraram a mão de obra necessária para levar adiante seu ambicioso projeto.
A obra contratou cerca de 19,9 mil barbadenses. Eles representaram 44% de toda a mão de obra empregada na construção.
É preciso somar a este número cerca de 25 mil pessoas que emigraram da ilha por conta própria. Na época, a população total de Barbados era de pouco mais de 150 mil habitantes.
A prosperidade chegou à ilha não apenas com as remessas de dinheiro enviadas pelos emigrantes. Houve também impactos sobre o mercado de trabalho local.
Foi preciso começar a pagar melhores salários, incorporar as mulheres e modernizar a indústria açucareira, que é a principal atividade econômica do país.
Para Maurer, uma consequência significativa foi o dramático aumento do número de pequenos proprietários e o rápido crescimento do setor bancário da ilha.
O "dinheiro do Panamá" também ajudou a consolidar a previdência social de Barbados. Em 1921, o sistema já cobria 94% da população e serviu para aumentar significativamente seu nível educacional, transformando a ilha para sempre.
3. Campanha modelo de saúde pública
A tecnologia e o projeto mais adaptado à complexa geografia panamenha não foram os únicos fatores que permitiram aos Estados Unidos triunfar no local onde os franceses já haviam fracassado.
Foi igualmente importante sua capacidade de eliminar a malária e a febre amarela, que dizimaram os trabalhadores da malograda empreitada francesa.
O médico cubano Carlos Finlay (1833-1915) já havia identificado, alguns anos antes, o vínculo entre os mosquitos e as doenças. E os princípios de controle do contágio foram colocados em prática em Cuba durante a guerra hispano-americana de 1898.
Mas foi o sucesso da sua aplicação no Panamá que permitiu ao modelo atingir visibilidade mundial.
Os números falam por si. Estima-se que tenham morrido, ao todo, 25.609 pessoas durante os trabalhos de construção do Canal do Panamá.
Destas, 22.819 mortes ocorreram durante a administração francesa. A maioria foi causada pelas mesmas doenças que os Estados Unidos viriam a combater de forma eficaz posteriormente.
O mérito se deve fundamentalmente ao epidemiologista norte-americano William Gorgas (1854-1920). Ele já havia sido destacado para Cuba anteriormente e foi encarregado de projetar a campanha de saúde pública mais ambiciosa da época.
Para Maurer, o esforço para erradicar a malária e a febre amarela seria o principal benefício do projeto para o Panamá, depois do próprio canal. E as lições aprendidas no processo foram levadas para todo o mundo.
4. Um império... da aviação
Não é segredo que, desde o princípio, os Estados Unidos conceberam o Canal do Panamá como uma peça fundamental para sua consolidação como potência mundial, no plano econômico e militar.
Os números reunidos por Maurer indicam que o canal não foi um fator fundamental para a expansão norte-americana no início do século 20 - embora os Estados Unidos tenham recebido a maior parte dos seus benefícios financeiros, equivalentes a 0,2% do Produto Interno Bruto anual, nas duas primeiras décadas.
Mas o canal trouxe efeitos transformadores para algumas regiões do país, especialmente o noroeste, que aumentou consideravelmente o mercado interno para sua produção de madeira.
Estes lucros permitiram que William Boeing (1881-1956), então presidente de uma madeireira no Estado norte-americano de Washington, fundasse e mantivesse uma pequena empresa aérea nos seus primeiros anos de operação.
"Na época da Segunda Guerra Mundial [1939-1945], a Boeing já havia alterado radicalmente a economia de Seattle", explica Maurer.
"Sem o Canal do Panamá, toda a região do noroeste dos Estados Unidos e uma parte importante do Canadá teriam se desenvolvido com muito mais lentidão, de uma forma muito diferente do que aconteceu."
5. Aproveitar o crescimento da China
Seattle não é o único exemplo de uma região transformada graças ao Canal do Panamá. E os benefícios da sua construção também não se limitaram aos Estados Unidos.
O Chile e o Japão, por exemplo, estão entre os primeiros favorecidos. Isso se deve à redução dos custos de transporte dos seus produtos até a costa leste dos Estados Unidos e, em menor escala, ao litoral atlântico da Europa.
O canal também é utilizado por países como o Brasil e a Argentina, além de certas regiões dos Estados Unidos.
"A demanda de carvão, por exemplo, diminuiu muito nos Estados Unidos", segundo Maurer.
"Mas o Canal do Panamá permite que muitas regiões produtoras de carvão exportem seu produto para o leste asiático. Não é o melhor para o planeta, mas é bom para as mineradoras do leste dos Estados Unidos."
O impacto do canal sobre produtos como a soja brasileira não é tão significativo, já que as necessidades da China garantem a demanda, independentemente do canal.
Mas Maurer acredita que os custos que precisariam ser cobertos se o canal não existisse teriam reduzido e desacelerado a demanda por commodities que tanto beneficiou a América Latina.
"Não podemos dizer que, sem o Canal do Panamá, as coisas seriam totalmente diferentes, mas muitas mudanças certamente teriam ocorrido com mais lentidão", conclui o acadêmico.