A série de concessões feitas pelo Brasil aos EUA em troca de apoio à entrada na OCDE
Discussão sobre apoio oficial dos americanos à entrada na organização ocorre após série de concessões, inclusive comerciais, de Bolsonaro a Trump.
Depois de alardear a possibilidade de um ingresso rápido do Brasil — bancado pelos Estados Unidos — à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o governo Bolsonaro tentou minimizar a importância de uma carta do secretário de Estado Americano, Mike Pompeo, à entidade, em que ele defende abertamente apenas o ingresso de Argentina e Romênia ao grupo de 36 países que compõem a organização.
A carta, datada do final de agosto, foi revelada pela Bloomberg e confirmada pela reportagem da BBC News Brasil.
O apoio às pretensões brasileiras de estar na OCDE foi obtido em março, em visita do presidente Bolsonaro ao par americano Donald Trump, e era considerado pelo Itamaraty como seu principal resultado na política internacional de alinhamento aos Estados Unidos adotada na gestão atual.
Havia dentro do próprio governo a expectativa de que o aperto de mãos com Trump seria o suficiente para que o Brasil furasse a fila de nações postulantes a membros da OCDE. O protocolo, no entanto, se impôs.
"A diplomacia internacional tem um tempo próprio, bem mais lento que o tempo da política de redes sociais do Bolsonaro. O processo de ingresso na OCDE leva anos. O presidente quis sugerir à sua base que sua relação especial com Trump faria milagres, mas não existem milagres", afirma Guilherme Casarões, professor de política internacional da Fundação Getúlio Vargas.
Após a repercussão da carta, a Embaixada dos EUA no Brasil divulgou comunicado reiterando apoio à entrada do Brasil na OCDE, mas ressaltando que expansão do grupo deve ser feita "em um ritmo controlado".
E no início da noite, o Departamento de Estado americano divulgou nota afirmando que o país apoia, sim, a entrada do Brasil na OCDE e que a carta revelada pela imprensa mais cedo "não reflete com precisão a posição dos Estados Unidos" em relação à ampliação da organização.
"Apoiamos com entusiasmo a entrada do Brasil nesta importante instituição e os Estados Unidos farão um esforço grande para apoiar a entrada do Brasil", diz o texto.
O secretário Pompeo reproduziu a mensagem no Twitter, afirmando também que o governo dos EUA dá apoio a que o Brasil "inicie o processo" de entrada na OCDE. Bolsonaro retuitou as mensagens do americano acrescentando, em inglês, a frase "Not today, fake news media!" ("Hoje, não, mídia mentirosa" em tradução livre).
Mais tarde, o próprio Trump postou sobre o assunto em seu Twitter. Ele chamou de "fake news" a reportagem da Bloomberg e afirmou que "o comunicado conjunto que eu e o presidente Bolsonaro divulgamos em março deixa absolutamente claro meu completo apoio ao início do processo brasileiro para se tornar um membro da OCDE. Os Estados Unidos apoiam o presidente Jair Bolsonaro".
A mensagem deixa claro que os americanos consideram que o Brasil está apenas iniciando sua jornada para se mostrar apto a compor a OCDE.
Segundo observadores, Bolsonaro confiava em uma indicação expressa não apenas por sua propalada proximidade presidencial com Trump. Desde março, quando ocorreu a visita, o governo brasileiro fez uma série de concessões, inclusive comerciais, aos americanos em troca do endosso à vaga na organização.
Agrados aos EUA
A OCDE, atualmente com 36 países, é um fórum internacional que promove políticas públicas, realiza estudos e auxilia no desenvolvimento de seus membros, fomentando ações voltadas para a estabilidade financeira e fortalecer a economia global.
Foi criada em 1960, por 18 países europeus mais EUA e Canadá. Além de incluir vários dos países mais desenvolvidos do mundo, o grupo abriu suas portas para nações em desenvolvimento como México, Chile e Turquia. Brasil, Índia e China têm status de parceiros-chaves.
O Brasil apresentou um pedido formal para ingressar na OCDE em 2017, durante o governo do ex-presidente Michel Temer (MDB).
A expectativa era de que o pedido fosse atendido rapidamente, mas as negociações emperraram. Um dos entraves seria justamente a posição do governo dos EUA: além do Brasil, havia outros países pleiteando a entrada, e Washington considera que a entrada em massa de todos eles descaracterizaria a organização.
Além de Argentina e Romênia, que ganharam o endosso oficial dos EUA, desejam fazer parte do grupo países como Peru, Croácia e Bulgária.
Antes de Michel Temer, durante os governos dos petistas Lula e Dilma Rousseff, o país não pleiteava o ingresso na organização. Apesar disso, o Brasil já trabalha com a OCDE em diversos temas desde a década de 1990.
Para além do apoio ao pleito brasileiro na OCDE, Brasil e EUA também firmaram uma série de compromissos comerciais. Bolsonaro concordou em abrir uma cota anual de 750 mil toneladas de trigo americano com tarifa zero, medida que afeta a Argentina, principal vendedor de trigo para o Brasil.
No fim de agosto, o Ministério da Economia decidiu não só prorrogar por mais um ano a importação de etanol americano isenta de uma tarifa de 20%, como elevou a cota dos 600 milhões de litros para 750 milhões de litros — a taxa passa a ser cobrada quando o volume negociado supera a cota.
A medida atendeu principalmente aos interesses dos americanos, os maiores exportadores ao Brasil, de etanol, produzido a partir do milho — segundo dados oficiais, 99,7% do etanol importado pelo país vem dos EUA. Desagradou, em contrapartida, produtores do Nordeste brasileiro, que consideram desleal a competição com o preço oferecido pelos americanos,
Desde 2016, o Brasil é o país que mais compra etanol americano. A expectativa dos produtores brasileiros era de que o governo americano liberasse seu mercado de açúcar, um dos mais protegidos do mundo, mas não houve essa contrapartida por enquanto.
Concessões concretas em troca de apoio simbólico
"A negociação (para o apoio dos EUA à entrada brasileira na OCDE) envolveu concessões muito concretas do Brasil em torno de expectativas de apoio mais simbólico dos americanos", afirma Elaini da Silva, professora de relações internacionais da PUC.
Silva cita outros exemplos, como a concessão aos EUA da exploração da base espacial de Alcântara, no Maranhão, a isenção de vistos para turistas do país sem reciprocidade para brasileiros, e o fato de o Brasil ter abdicado do status de país em desenvolvimento nas negociações junto à Organização Mundial do Comércio (OMC), o que poderia trazer prejuízos tarifários às exportações brasileiras.
O tratamento diferenciado prevê benefícios para países emergentes em negociações com nações ricas. O Brasil tinha, por exemplo, mais prazo para cumprir determinações e margem maior para proteger produtos nacionais.
Além do impacto direto nas futuras negociações comerciais brasileiras, essa decisão afetou a relação com países do Brics — grupo formado por Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul.
Isso porque essas nações vão acabar sendo mais pressionadas a abrir, também, mão do tratamento diferenciado. E a Índia já está retaliando o Brasil.
"Na OMC, a Índia já vetou outro dia a nomeação de um embaixador brasileiro para negociar questões na área de pesca e foi um veto ligado exatamente a essa negociação entre Estados Unidos e Brasil pela entrada na OCDE", explicou à BBC News Brasil antes da reviravolta o professor Marco Vieira, da Universidade de Birmingham, no Reino Unido.
"Portanto, o Brasil está se isolando não só no contexto de economias-chave na Europa e no acordo do Mercosul, mas também com parceiros do Sul global: as economias emergentes como a Índia."
Bolsonaro também não colocou na mesa para discussão o aumento protecionista de impostos sobre o aço — medida de Trump contra os chineses que prejudicou o Brasil, tampouco o fim dos subsídios governamentais à produção de soja americana, que a torna competitiva em relação à safra nacional do grão.
Pressa?
Além disso, Trump anunciou o Brasil como seu "aliado preferencial extra-Otan" — nome para designar países que não são membros da aliança Organização do Tratado do Atlâncito Norte (Otan) mas que são aliados estratégicos militares dos EUA, ou seja, que terão um relacionamento de trabalho estratégico com as Forças Armadas americanas.
Para o Brasil, isso significa vantagens de acesso a tecnologia militar americana. Mas, segundo alguns analistas, também poderia arrastar o país para conflitos e disputas com países como China e Rússia, algo totalmente fora da agenda brasileira, além de ser de interesse dos EUA porque colocaria o país em sua área de influência de maneira ainda mais segura.
As concessões brasileiras, no entanto, talvez tenham sido apressadas.
"Como o Brasil tem se mostrado um aliado incondicional da gestão Trump, é provável que eles queiram extrair ainda mais concessões do país", afirma o embaixador Paulo Roberto de Almeida.
Em nota enviada no fim da tarde desta quinta-feira, a embaixada americana no Brasil afirmou que mantém o apoio à adesão do país à OCDE. " Apoiamos a expansão da OCDE a um ritmo controlado que leve em conta a necessidade de pressionar as reformas de governança e o planejamento de sucessão", diz a nota.
Nos bastidores, autoridades brasileiras pressionaram pelo informe da embaixada para mitigar a reação negativa à carta de Pompeo. O Itamaraty e a embaixada brasileira em Washington não comentaram. Já a OCDE afirmou que o ingresso de seis novos membros está em curso e que o processo é sigiloso e depende do consenso entre os membros atuais.
Publicamente, integrantes do governo agiram para minimizar a decisão dos EUA.
"Toda a histeria sobre a OCDE na imprensa revela o quão incompetentes e desinformadas são as pessoas que escrevem sobre política no Brasil. Não há fato novo. Os EUA estão cumprindo exatamente o que foi acordado em março e agindo de acordo com o cronograma estabelecido na ocasião", afirmou no Twitter Filipe G. Martins, assessor especial da Presidência para assuntos internacionais.
"Argentina enfrenta desafios conjunturais que tornam o início do processo de acessão emergencial. Por isso, Brasil e EUA concordaram com um cronograma que teria início com a Argentina. Trata-se de fato público e notório, omitido pela imprensa por incompetência ou desonestidade", acrescentou.
O americano Michael Shifter, presidente do think thank Inter-american Dialogue, especializado nas relações entre EUA e América Latina, discorda. À BBC News Brasil, ele afirmou tratar-se de "definitivamente um grande abalo para Bolsonaro, que apostou tudo nesse relacionamento com Trump".
"Parece que a decisão dos EUA é a visão tradicional, ir devagar com a entrada de países na OCDE. Mas certamente Trump prometeu (a Bolsonaro) outra coisa", acrescentou.
Na sua visão, o que ocorreu pode indicar que, ao contrário do alardeado, as relações entre EUA e Brasil não mudaram tanto assim.
"(Há) esta certa admiração mútua entre Bolsonaro e Trump, e muito da retórica dos dois soa muito parecida. Mas quando o assunto são decisões reais, talvez as coisas não tenham mudado muito. Está tudo no nível superficial, e quando você precisa agir para construir uma parceria mais significativa, como se tornar membro da OCDE, os EUA basicamente aplicam seus critérios normais sobre a extensão da OCDE, o que tem sido mais ou menos a política tradicional (em governos anteriores)."