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'Atlântida soviética': as cidades russas e ucranianas que foram inundadas pelo regime de Stálin

Centenas de cidades, povoados e aldeias foram inundados na União Soviética por ordem de Stálin para a construção de megaprojetos como hidroelétricas e canais. Para o reservatório Uglich, foram inundados 5.000 km², uma área dez vezes maior que a da usina de Belo Monte, no Brasil.

22 fev 2021 - 06h34
(atualizado às 07h39)
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O campanário do mosteiro de São Nicolau, em Kalyazin, é o último vestígio de uma construção do século 12 que foi submersa para um dos megaprojetos soviéticos
O campanário do mosteiro de São Nicolau, em Kalyazin, é o último vestígio de uma construção do século 12 que foi submersa para um dos megaprojetos soviéticos
Foto: BBC News Brasil

"Eles disseram: 'Vamos construir uma hidrelétrica e precisamos que você saia de casa porque essa área vai ficar alagada'." Andriy Mastrienko ainda se lembra do dia em que teve que deixar para sempre a casa onde sua família morou por gerações, perto do rio Dnieper, na Ucrânia.

"Eles nos disseram que tínhamos que ir e deixar apenas as paredes", diz ele à BBC.

Sua cidade — como 200 outras na Ucrânia e centenas de outras em toda a União Soviética (URSS) — foi inundada por ordem de Stálin para a construção de megaprojetos socialistas: usinas hidrelétricas, canais e represas.

As construções faziam parte do desenvolvimento econômico soviético e da corrida geopolítica da Guerra Fria: entre os esforços soviéticos para demonstrar a superioridade do sistema socialista sobre o capitalista, a URSS tinha projetos ambiciosos para alcançar uma economia industrial avançada.

As consequências da industrialização apressada foram bem mais graves que as que a Europa ocidental tinha vivido no século anterior e as que vemos hoje em países como Brasil e China: deslocamento humano em massa, mortes e danos ambientais a alguns dos ecossistemas até então mais conservados do continente.

A memória do reassentamento forçado e da destruição de suas casas assombra os sobreviventes, mais de 70 anos depois. "As autoridades não explicaram muito por que as pessoas tiveram que ser realocadas. Havia apenas uma mensagem: é necessário para o desenvolvimento da economia", diz Svietlana Sliusarenkio, que era uma menina quando seus pais tiveram que deixar sua aldeia, à BBC.

Por toda a Rússia e em muitas ex-repúblicas soviéticas ainda existem torres de igrejas, paredes ou edifícios abandonados que se projetam como mastros num leito de água.

Eles são o último vestígio de uma era sem democracia, os últimos testemunhos de pedra do que tem sido chamado de "Atlântida soviética" (em referência à mítica cidade submersa).

Andriy Mastrienko é uma das pessoas desabrigadas que está viva até hoje
Andriy Mastrienko é uma das pessoas desabrigadas que está viva até hoje
Foto: BBC News Brasil

A industrialização de Stalin

Desde o final dos anos 1930, o governo Stálin concebeu uma nova concepção do "modelo soviético" de comunismo que buscava demonstrar por todos os meios possíveis a grandeza do sistema contra seu feroz oponente, o capitalismo.

Diferentemente do que havia sido proposto por Marx — que argumentava que o socialismo deveria ser instaurado em uma sociedade industrial avançada e rica —, o comunismo na União Soviética havia surgido em uma sociedade rural, pobre, com a economia muito atrasada em relação ao resto do continente. Além disso, o país sofreu com inúmeras guerras, fome e problemas gerados pelo conflito com o ocidente capitalista.

O plano soviético para alcançar os países desenvolvidos do capitalismo e sair da pobreza era investir em industrialização pesada.

Esse plano, somado ao culto de personalidade que se instaurou no país após Stálin assumir o comando do partido e perseguir opositores, deu lugar ao que alguns historiadores definiram como "megalomania" arquitetônica: uma obsessão por construir edifícios e projetos colossais que representassem a "glória da União Soviética" e seu "poder sobre a natureza".

Em 1935, logo após o país ter saído de uma das piores fomes da história, o Comitê de Planejamento Estatal aprovou a criação da maior barragem construída no mundo até então. E em abril de 1941, os rios Volga e Sheksna foram bloqueados para a criação do reservatório Uglich.

Foram 5.000 km² inundados. Mais de 660 aldeias e a cidade de Mologa, fundada no século 12, ficaram completamente submersas. Para comparação, a usina de Belo Monte, no Brasil — cujo projeto foi altamente criticado no país devido aos impactos ambientais — alagou uma área de 478 km², segundo a NorteEnergia, que administra a usina.

Ao todo, cerca de 130 mil pessoas tiveram que ser realocadas para dar lugar ao reservatório de Uglich, e grandes extensões de terras agrícolas e florestas foram destruídas ao longo do rio Volga.

A propaganda soviética era focada no culto à personalidade de Stálin
A propaganda soviética era focada no culto à personalidade de Stálin
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

A cadeia de reservatórios que continuou a ser construída e a inundar cidades se tornou o complexo hidroelétrico de Volga GES — que foi por muitos anos o maior do planeta.

Arquivos secretos divulgados depois do fim do stalinismo mostraram que a construção foi feita principalmente por presos do campo de trabalho forçado de Volzhsky, para onde também foram enviados os moradores da região que se recusaram a se mudar.

As cenas se repetiram pelo território da União Soviética, especialmente após o fim da Segunda Guerra Mundial — que marcou o início da recuperação econômica soviética e também o começo da Guerra Fria.

Alguns dos grandes projetos da URSS, como o Canal do Turcomenistão, nunca foram terminados, mas alguns seguem em pé até hoje.

A hidrelétrica de Kremenchug — cuja construção desabrigou as famílias de Mastrienko e Sliusarenkio — foi inaugurada em 1960.

"Se alguém recusasse, mandavam escavadeiras na data marcada para a partida para demolir as casas", lembra Sliusarenkio. "Não tinha alternativa, ninguém podia questionar nada. Era uma ordem e tinha que ser cumprida."

As inundações

Segundo Sliusarenkio, um ano antes da inundação planejada, as autoridades começaram a visitar as aldeias para avisar que as pessoas deveriam sair e avaliar as casas. O governo pagava um pouco mais pelas casas mais velhas.

Depois as casas foram marcadas nas fachadas: a data em que os seus habitantes deveriam deixá-las era marcada com tinta.

As autoridades forneceram transporte para as famílias, mas o gado teve que ser deslocado a pé, muitas vezes por distâncias de centenas de quilômetros. "Minha esposa teve que fazer todo o trajeto a pé com as vacas", diz Mastrienko.

A igreja de Krokhino foi um dos poucos edifícios que ficam só parcialmente submersos na construção das represas em Volga
A igreja de Krokhino foi um dos poucos edifícios que ficam só parcialmente submersos na construção das represas em Volga
Foto: Nataturka.ru / BBC News Brasil

Sliusarenkio, por sua vez, lembra que os habitantes tiveram a oportunidade de retirar os restos mortais dos cemitérios das cidades que seriam inundadas e realocá-los.

"Se eles não podiam ou não queriam desenterrar seus mortos, eles removiam as cruzes e passavam as escavadeiras para nivelar as abóbadas dos túmulos com o solo, para que os restos mortais não flutuassem quando as sepulturas estivessem debaixo d'água", conta.

A história oficial da Rússia não inclui os nomes das pessoas que se estima que acabaram se afogando porque se recusaram a deixar suas casas antes de serem inundadas.

Boa parte da memória da "Atlântida soviética" e das centenas de cidades e vilas que a formaram se perdeu com a morte das últimas testemunhas daqueles anos e devido ao escasso interesse das autoridades russas em mergulhar em um passado que poderia prejudicar ainda mais a imagem de um líder soviético que o presidente Vladmir Putin admira.

No entanto, com o passar dos anos, as estações e as secas, novos vestígios das aldeias submersas aparecerem esporadicamente na imprensa russa. E novas empresas de turismo fazem excursões em iates e cruzeiros para as "Atlântidas", novos destinos turísticos cheios de nostalgia.

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