Cartão para menores: uso é favorável à educação financeira dos filhos?
Bancos oferecem alternativas de cartão adicional ou pré-pago para crianças e adolescentes
Moradora de Valinhos, cidade que fica no interior de São Paulo, Daniela Oliva, 36 anos, recorreu ao uso do cartão de crédito pré-pago para incrementar a educação financeira do filho de 9 anos. Rafi Oliva recebe uma mesada de R$ 40. E, desde o início do ano, trocou o tradicional cofrinho com dinheiro vivo pelo cartão, que ganhou um espaço cativo em sua carteira junto a documentos pessoais, como RG e carteirinha escolar.
Como forma de incentivar o filho a tomar boas decisões financeiras, ter disciplina e autocontrole, Daniela deu a Rafi autonomia sobre os gastos. "Todo dia 1º, os R$ 40 são liberados. Ele saca R$ 8 para guardar no cofre, que são os 20%", conta a mãe, que diz que o restante é gasto para comprar jogos, cartas de Pokémon ou qualquer outra coisa que não esteja relacionada às suas necessidades básicas.
Às vezes, Rafi até tenta negociar com a mãe um adiantamento para conseguir comprar algo mais caro. No entanto, Daniela afirma que o pedido sempre é negado. "Nunca dei adiantamento, pois minha intenção é mostrar que as coisas não são adquiridas com facilidade", enfatiza ela.
Embora seja uma criança de apenas 9 anos, nunca ocorreu de Rafi perder o cartão, esquecer a senha no momento de uma compra ou até fazer um pagamento errado. Mas, segundo a mãe, ele já gastou todo o dinheiro em um único dia. Hoje, no entanto, ele está bem mais consciente.
"Rafi me levou para comer pizza hut sábado passado com as economias, fruto do dinheiro que ele foi juntando no cartão de crédito", conta Daniela. "Depois que fiz o cartão, vejo que ele está mais consciente dos valores da vida, quanto sobra e quantos meses precisa juntar para efetuar alguma compra", completou.
Uso do cartão é favorável na educação financeira dos filhos?
Em um País onde pelo menos um terço das pessoas gasta mais do que recebe - segundo dados do Índice de Saúde Financeira do Brasileiro (I-SFB) –, investir em iniciativas como a da mãe de Rafi pode ser um dos caminhos para mudar o panorama econômico no futuro, como apontam educadores financeiros ouvidos pelo Terra.
Com o avanço da digitalização financeira e com as pessoas tendo cada vez menos contato com o dinheiro físico (de papel ou moeda), o uso do cartão por menores ou até mesmo o Pix pode ajudar a evitar problemas financeiros lá na frente. Atualmente, alguns bancos já oferecem alternativas de cartão adicional de crédito ou débito pré-pago para crianças e adolescentes.
"Pode ser uma ferramenta educacional muito boa, porque pode ajudar essa criança, esse jovem, a compreender os conceitos de gasto. É essencial enfatizar que o cartão não é uma fonte infinita de dinheiro. É algo que precisa ser controlado, com metas, objetivos e limites", afirma o educador financeiro Thiago Godoy.
Aline Soaper, também educadora financeira, concorda com Godoy, mas alerta para a importância do controle e acompanhamento dos pais a respeito do uso do cartão por menores. Ela explica que, dentro do aplicativo do próprio banco, há como acionar mecanismos de controle.
"É importante ensinar como funciona cada um dos serviços e colocar um limite. A criança ainda não tem discernimento para saber que o dinheiro está na conta e ele não pode gastar, então tem que ter um limite. Os pais podem colocar esses limites dentro do próprio aplicativo do banco", orienta.
O importante mesmo é avaliar o nível de maturidade e organização que a criança tenha para evitar que a medida gere mais problemas do que benefícios. Ou seja, se o filho for mais desatento, talvez não seja ideal deixá-lo em posse do cartão e seja necessário monitorá-lo em todas as compras. Isso pode evitar perdas, furtos e até golpes.
Prós do uso do cartão por menores
- Ter a segurança de não portar dinheiro em espécie;
- Possibilidade de os pais monitorarem onde e como a criança está gastando o dinheiro;
- Possibilidade de estabelecer limites de gastos;
- Utilização do cartão de forma pedagógica para ensinar a criança a usar o dinheiro de forma responsável;
- Possibilidade de ensinar a fazer escolhas, manter o autocontrole para não gastar sem a permissão dos pais e de ter a responsabilidade de manter o cartão em segurança;
- No cartão de crédito, existe o acúmulo de pontos que geram benefícios e os adolescentes podem utilizar esses benefícios também.
Contras do uso do cartão por menores
- Se não houver estabelecimento de limites, a criança pode gastar além do que foi permitido;
- Possibilidade de cair em golpes inserindo dados do cartão em locais não seguros;
- Falsa percepção de que pode gastar com tudo o que quiser sem limites;
- Perder o cartão ou ser furtado e ter gastos feitos por outras pessoas;
- Se a família não tem planejamento e controle financeiro, será mais uma porta para aumentar o endividamento familiar.
Uma experiência controlada de transações financeiras fará com que o menor aprenda a administrar aquele valor ali determinado. Isso vai, claro, dar condições para esse jovem, inclusive, errar, que é muito importante o jovem errar, para que aprenda quando jovem e não erre quando adulto. (Thiago Godoy, educador financeiro)
Mentalidade sobre uso da Mesada
A Serasa divulgou no início de outubro uma pesquisa sobre os hábitos dos pais e mães em relação a finanças e seus filhos. Sobre o hábito da mesada, de acordo com o resultado da pesquisa, apenas 39% dos pais dão mesada aos filhos. Os dois principais motivos para dar a mesada foram: comprar lanche na escola e ensinar a guardar dinheiro para o futuro.
"A mesada é uma prática muito comum na educação financeira das crianças. A mesada ajuda a criança a aprender a administrar orçamento, a definir prioridades, a definir quais gastos ela vai fazer e a tomar decisões financeiras. É claro que valor é uma questão muito pessoal, os pais vão definir, mas não é indicado dar valores altos, pois é uma ferramenta de educação", afirma Godoy.
Entre os pais que dão mesada para os filhos, 62% têm uma frequência mensal. A maioria deles (53%) dá de R$ 20,00 a R$ 60,00 por mês para as crianças. Outros 20% afirmam dar entre R$ 60,01 a R$ 100,00, enquanto 26% dizem dar acima de R$ 100,00. O levantamento mostrou que o valor da mesada tende a ser maior para filhos com mais idade.
"Não há um valor mínimo de mesada recomendado. Isso vai depender muito do dia a dia da família. O que a gente não recomenda é usar um valor muito alto, porque isso pode prejudicar até a noção sobre dinheiro da criança. Então tem que estar condizente com o dia a dia dela", diz Godoy, que afirma também não ter um mínimo recomendado para a incorporação do uso dos cartões. "Talvez tomar como base o valor do lanche", acrescenta.
"Entre 5 e 7 anos é uma boa idade para começar a receber a mesada, porque é a idade que a criança começa a aprender a fazer pequenas escolhas. O que a gente precisa ter cuidado são os valores, não adianta você dar um valor muito alto para uma criança de 5 anos, porque ela não tem consciência do que ela vai fazer com aquele dinheiro", afirma Aline Soaper.
Mesada não é única forma de ensinar os filhos
Embora a mesada seja uma aliada no processo de educação financeira dos menores, nem todo mundo tem condições de dar mesada para o filho. E a pergunta que muitos fazem é: como devo contribuir com a educação financeira do meu filho? Segundo os especialistas, há várias formas de ensinar e ajudar a construir uma base sólida para a educação financeira da criança mesmo sem uma mesada.
"Os pais podem, por exemplo, incentivar a criança a economizar parte de qualquer dinheiro que receba, seja de tios ou de avós. Pode incentivar também a economizar um dinheiro que ganha no aniversário ou no Natal. Pode ensinar sobre orçamento, diferença entre necessidade e desejo, como é que define metas. Enfim, existem inúmeras maneiras", orienta Godoy.
Aline Soaper também sugere mostrar ao filho os valores das coisas. "Aqueles pais que não têm dinheiro para dar mesada, eles podem mostrar aos filhos o quanto que ele gasta de dinheiro para comprar a alimentação da família, para fazer o supermercado. Mostrar que a família usa dinheiro para pagar conta de água, luz. Ao mostrar o valor de cada produto e comparar preço, você está ensinando seu filho."
Loida Monzo, 47 anos, mãe do Enrico Monzo, 14, é uma dessas mães que não dão mesada ao filho, mas que vê a educação financeira como um pilar importante para ensinar ao filho. Há três anos, o adolescente, que mora com a mãe em São Caetano, Região Metropolitana de São Paulo, utiliza tanto cartão de crédito quanto de débito pré-pago.
"O Enrico usa cartão de débito e crédito desde os 11 anos. É tudo no nome dele. O limite do cartão de crédito é a quantia disponível no débito. Isso significa que se coloco R$ 100 no cartão de débito, este será o limite disponível no crédito, mas não me preocupo muito com isso, pois ele gere muito bem o dinheiro", conta a mãe, que diz não depositar valores fixos mensais para o filho, que mantém em sua conta todo o dinheiro que ganha dos pais ou dos avós e dos tios.
Loida tem acesso à conta do filho pelo aplicativo, que está instalado em seu celular. Ela afirma que é pelo app que ela verifica os gastos do Enrico. "Geralmente, ele usa para comprar jogos, salgadinhos e lanches quando vai para escola, mas diria que ele utiliza a maior parte do dinheiro para comprar livros."
Penso que utilizando o cartão desde cedo, o Enrico terá noção de quanto custam as coisas. Ele vai saber que não pode ter tudo o que quer e na hora que quer, mas que precisa de um planejamento. Ou seja, o uso do cartão trará uma consciência financeira (Loida Monzo, mãe de Enrico)
Além de educar, trazer consciência e maturidade financeira, o uso do cartão por menores como Rafi e Enrico pode evitar que eles, quando adultos, caiam em armadilhas financeiras. Conforme avaliam os especialistas, ao saber lidar com o orçamento, poupar dinheiro e investir, a geração do futuro dificilmente irá cometer os mesmos erros.
"Ensinar educação financeira desde cedo pode ajudar a criar uma geração mais consciente em relação ao dinheiro, que sabe como gerenciar melhor suas finanças, que sabe como melhor tomar decisões financeiras, decisões financeiras mais responsáveis", afirma Thiago Godoy.
Dados do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) mostram que o número de jovens inadimplentes vem crescendo no Brasil. Segundo o último levantamento feito em 2018, 46% dos brasileiros com idade entre 25 e 29 anos têm dívidas em atraso e estão inadimplentes. Entre os que têm idade entre 18 e 24 anos, a proporção é de 19%. Juntos, esses grupos representam 12,5 milhões de pessoas.
Para Aline Soaper, pelo histórico de endividamento que nós temos no Brasil, ensinar as crianças e os adolescentes a cuidar do dinheiro é fundamental para que eles tenham uma vida financeira saudável. "O cartão de crédito pode ser um excelente aliado nessa educação financeira, desde que os pais parem para ensinar como usar o cartão."
Movimentação financeira de jovens
A iniciativa dos pais de ensinar os filhos sobre educação financeira utilizando cartão tem movimentado o setor dos bancos. Consultado pela reportagem, o Banco Central (BC) informou o número de jovens entre 15 e 24 anos com conta bancária no Brasil. Os dados mostram que houve um grande aumento nos últimos cinco anos.
Como solicitar um cartão para um menor de idade?
Documentos necessários para abrir a conta
- RG E CPF do responsável e da criança;
- Comprovante de residência.
Informação sobre a conta
Os pais ou responsável pelo menor e que já são correntista do banco precisam solicitar uma conta específica, que ofereçam cartão de crédito pré-pago ou de débito e permitam determinar um valor máximo diário que pode ser utilizado. As contas e cartões são gratuitas. A reportagem consultou os principais bancos digitais e físicos que informaram que não cobram anuidade e nenhum tipo de taxa na manutenção de conta e cartão de menores de 18 anos.
Ensino adaptado
Iniciativas como as de Daniela e Loida são importantes para preparar crianças e adolescentes para os desafios que terão na vida ao lidar com o dinheiro e o uso do cartão, mas, alinhado a isso, os especialistas indicam que os pais busquem colégios que tenham no itinerário formativo aulas de finanças.
No último dia 26 de julho, o governo de São Paulo anunciou a reformulação do ensino médio no Estado para o ano letivo de 2024. A secretária de Educação (Seduc-SP) decidiu reduzir o total de itinerários formativos e inseriu novas disciplinas na grade escolar, como Educação Financeira.
O tema da educação financeira nas escolas é antigo no Brasil. Essa discussão iniciou a partir da publicação do Decreto nº 7.397, de 22 dezembro de 2010, que instituiu a Estratégia Nacional de Educação Financeira (Enef). Embora não exista ainda nenhuma lei federal aprovada sobre o tema, ações acerca da temática são compartilhadas por órgãos e entidades públicas, nos âmbitos federal, estadual e municipal.
No ensino fundamental, a educação financeira passou a ser obrigatória no currículo em 2017 com a aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). No ensino médio, o assunto não é obrigatório, porque a BNCC para o ensino médio ainda está em discussão. Concomitantemente a isso, tramitam mais de 20 projetos na Câmara Federal que também tratam da inclusão da educação financeira como tema transversal dos currículos.
Segundo Thiago Godoy e Aline Soaper, é este tipo de ensino que vai habilitar que crianças como Rafi e Enrico reconheçam padrões no uso do dinheiro, a entender a dinâmica dos juros no financiamento, da inflação, do custo do dinheiro e de toda a dinâmica financeira essencial para tomarem decisões na sua vida adulta – gerenciar o dinheiro, dívidas, economizar e investir.
Muitas crianças não vão ter educação financeira em casa, até porque os pais não tiveram. Então a escola assume esse papel de alfabetizar financeiramente a criança, de orientar a respeito de escolhas, de orientar a respeito de investimentos, para que essa criança tenha subsídios para trabalhar na vida adulta. Não trabalhar apenas para pagar as contas, mas que faça bom uso dos recursos financeiros (Aline Soaper, educadora financeira)
*Com edição e coordenação de Karen Lemos e Larissa Leiros Baroni.