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Caso Ghosn coloca em evidência questionável sistema jurídico japonês

6 mar 2019 - 18h23
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Ex-presidente da Renault e Nissan, empresário franco-brasileiro foi libertado sob fiança milionária. Caso revela abusos e falhas de uma Justiça para a qual uma acusação oficial quase sempre equivale a uma condenação.A cena desagradou a muitos no Japão: depois de deixar sua cela e atravessar os corredores da ala de segurança, o homem de cara amarrada, máscara contra gripe e boné de beisebol respira o ar fresco de Tóquio. Aos repórteres, reafirma sua inocência: tudo não passa de uma campanha de difamação; ele, Carlos Ghosn, não é um sonegador de impostos.

Carlos Ghosn ao deixar prisão em Tóquio
Carlos Ghosn ao deixar prisão em Tóquio
Foto: DW / Deutsche Welle

Para o ex-presidente das montadoras Renault e Nissan, os 108 dias passados na prisão são um escândalo. Para o Ministério Público, por outro lado, a libertação de Ghosn após o pagamento de fiança equivalente a 8 milhões de euros é um enorme problema, pois há risco de fuga.

De um modo ou de outro, o fato de o super-empresário estar agora em liberdade é uma sensação que poderá ter consequências que vão muito além deste caso concreto. O caso documenta não apenas quão drástica pode ser a queda para um ex-herói no Japão, mas também o papel que a Justiça possivelmente desempenha no processo.

Quando, em novembro de 2018, Ghosn foi detido sob suspeita de fraude fiscal e sonegação de 38,8 milhões de euros, bastou um dia para o pop-star entre os executivos japoneses, que até já inspirara diversos mangás, se transformar num criminoso condenado. A notícia de sua detenção desencadeou uma onda de reportagens sobre sua obscena riqueza, suas mansões em Paris, Rio, Amsterdã, entre outros lugares.

No contexto desse debate, ganância e infração legal passaram a ser mencionadas no mesmo fôlego. Afinal, há muito os exorbitantes salários de Ghosn vinham chamando a atenção: por seus postos na Renault, Nissan e, desde 2016, também na Mitsubishi, nos últimos tempos ele recebia quase 20 milhões de euros por ano.

Mesmo entre a classe dos regiamente pagos chefes de multinacionais, isso era muito, e no Japão constituía recorde: Ghosn ganhava cinco vezes mais do que Akio Toyoda, o diretor executivo da Toyota, a maior montadora do mundo. Aquele que, a partir da virada do século, saneara a Nissan com mão de ferro, sendo celebrado no país por isso, era agora tachado de fominha. De fato: fica difícil descartar a possibilidade de que o brasileiro nato de pais libaneses possua uma personalidade insaciável.

Só que, com essa detenção, já estava praticamente selado o destino jurídico de Ghosn, já que no Japão um mandado de prisão quase equivale a uma sentença: em cerca de 99% dos casos o resultado é a condenação, muitas vezes envolvendo uma confissão.

Organizações de direitos humanos como a Anistia Internacional há muito criticam o fato de que no país numerosas confissões sejam obtidas por meios como condições de cárcere especialmente duras, em certos casos envolvendo tortura e sem acesso a um advogado. Os presos quase nunca são libertados sob fiança antes de admitirem a culpa.

No caso de Ghosn foi diferente: o tribunal competente em Tóquio concedeu seu terceiro pedido de libertação condicional, considerando não haver perigo de fuga. Agora sua equipe de advogados pretende partir para a ofensiva, podendo também colocar em questão o sistema penal do país, que mais uma vez está sendo severamente criticado.

Num editorial para o conceituado jornal de economia Nihon Keizai Shimbun, Stephen Givens, professor de Direito da Universidade de Tóquio, apontou que, segundo as leis japonesas, as acusações contra Ghosn não justificariam pena de prisão. Acumulam-se as afirmativas de que a diretoria da Nissan, contrária à fusão com a Renault planejada por seu presidente de conselho, o teria denunciado, a fim de se livrar dele.

Do ponto de vista do Ministério Público, por outro lado, o verdadeiro delito de Ghosn não teria sido apropriação indébita, mas sim ganância. Essa é, pelo menos a opinião do parlamentar Tomohiro Ishikawa, com base em sua própria experiência: em 2010 o político do liberal de esquerda Partido Democrático foi indiciado por receber suborno.

Depois de três semanas de cárcere, com 12 horas diárias de interrogatório, sem recurso a um advogado, ele acabou por prestar uma confissão abrandada e foi condenado a dois anos de prisão.

"Eles coagem a pessoa a uma confissão de acordo com a versão deles", afirmou Ishikawa numa entrevista à emissora britânica BBC sobre as técnicas de interrogatório japonesas. "Eles não anotaram o que eu disse", acrescentou.

Se Ghosn em breve declarar algo semelhante, todo o sistema jurídico japonês poderá cair em grave descrédito. Nesse caso, também ficaria seriamente prejudicada a reputação do Ministério Público, a cujos impulsos a Justiça do país muitas vezes cede. Ainda segundo Ishikawa, hoje em dia, numa época de desigualdade econômica crescente, os promotores públicos agem com motivação política: "Eles querem fazer nome como instituição que pune os ricos."

Se essa acusação se consolidar, o Japão mergulhará numa crise jurídica: a um sistema penal que obtém confissões perante coação, acrescenta-se um Ministério Público que extrapola o próprio mandato. Tal revelação seria especialmente vexaminosa no caso Ghosn. Afinal, certo está que, se não houve infração, o empresário franco-brasileiro pelo menos utilizou lacunas para garantir um mínimo de tributação sobre sua faraônica renda.

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