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Como a Argentina passou de 'país barato' a um dos mais caros da América Latina

Estimativas indicam que o peso argentino se valorizou em 40% no último ano, mas sem que poder aquisitivo da população acompanhasse a evolução.

25 jan 2025 - 14h12
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O fortalecimento da moeda local influenciou o turismo internacional na Argentina.
O fortalecimento da moeda local influenciou o turismo internacional na Argentina.
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

"A Argentina está cara em dólares", contou Manuel, empresário gastronômico de 37 anos, durante minha última visita à capital do país, Buenos Aires, no mês de dezembro. "Você que veio dos Estados Unidos vai perceber rapidamente."

Já no meu primeiro dia na cidade, confirmo a observação de Manuel no preço do café.

Em Palermo, bairro turístico da capital, uma xícara de café custa 3,3 mil pesos - US$ 3,20 pelo câmbio oficial (cerca de R$ 19), cotado a poucos centavos a menos que o paralelo, que os argentinos chamam de "dólar blue".

Costumo pagar um dólar a menos pelo café na mesma rede de cafeterias em Miami, nos Estados Unidos.

Mas não são só os lugares frequentados pelos estrangeiros que estão caros em dólares. A mesma situação se repete em locais menos turísticos e com produtos mais procurados pelos argentinos. Vemos o mesmo no pão fatiado, que custa US$ 4 (R$ 23,70), ou na manteiga a US$ 3 (R$ 17,80).

E também nos produtos importados. Um copo térmico Stanley, por exemplo, custa em Buenos Aires US$ 140 (R$ 830). Nos Estados Unidos, o mesmo copo não passa de US$ 30 (R$ 178).

Segundo o índice de preços Big Mac do McDonald's, criado pela revista The Economist em 1986, o preço do hambúrguer na Argentina é o mais alto da América Latina (US$ 7,37, cerca de R$ 43,70) e o segundo maior do mundo, atrás da Suíça.

Um ano atrás, o Big Mac custava na Argentina a metade do preço atual, em dólares.

Estimativas do Banco de Compensações Internacionais (BIS, na sigla em inglês) indicam que o peso argentino aumentou de valor em 40%, em termos reais, entre dezembro de 2023 e outubro do ano passado.

Mas este avanço não se traduziu em aumento do poder aquisitivo da população. Afinal, os salários permaneceram congelados e as chamadas correções do governo Javier Milei geraram forte recessão, que provocou queda do consumo.

"Não estamos nem melhor, nem pior. Temos problemas diferentes do ano passado", conta o dono de uma padaria com mais de 30 anos no setor, questionado sobre o efeito da valorização da moeda local sobre suas vendas. Ele votou em Milei e continua apoiando o presidente.

O impacto da queda da inflação argentina (a maior conquista de Milei no seu primeiro ano na presidência), aliada à valorização da moeda local, surpreende qualquer pessoa que não tenha visitado o país no último ano.

Mas por que a Argentina passou a ser "cara em dólares", depois de ter sido um dos países mais baratos da América Latina? E quais os impactos na sua economia?

O 'superpeso'

"Para viver na Argentina, preciso hoje de mais dólares do que um ano atrás", conta o programador brasileiro Thiago. Ele cobra por seus serviços na moeda americana e, há dois anos, decidiu morar na Argentina, com o câmbio favorável na época.

Desde que o peso se fortaleceu no país e o real caiu no Brasil, liderando a queda das moedas latino-americanas, Thiago pensa em voltar para São Paulo. "Lá, vivo melhor com menos dólares", ele conta.

Thiago não é o único. Em agosto de 2024, a BBC News Brasil noticiou que uma onda de brasileiros estava deixando a Argentina porque era "inviável" para eles permanecer no país.

O presidente Milei desvalorizou a moeda argentina em 54% logo após a sua posse. Um ano depois, ela se transformou no que os meios de comunicação do país chamam de "superpeso". Como isso aconteceu?

Javier Milei conseguiu reduzir o ritmo da inflação na Argentina.
Javier Milei conseguiu reduzir o ritmo da inflação na Argentina.
Foto: Reuters / BBC News Brasil

O motivo é a estratégia adotada por Milei para baixar a inflação, sua principal meta ao assumir a presidência. Afinal, em 2023, a inflação argentina atingiu 211%, segundo o Instituto Nacional de Estatística e Censos do país (Indec).

Milei empregou um instrumento que os economistas chamam de "âncora inflacionária". O preço do dólar oficial foi "ancorado", aumentando sua cotação - ou seja, desvalorizando o peso - pelo nível fixo de 2% ao mês, muito abaixo do índice mensal de inflação.

Esta medida, aliada à "âncora fiscal", que reduziu fortemente os gastos públicos, e à "âncora monetária", com a suspensão da emissão de dinheiro para financiar o Tesouro, foi fundamental para que a Argentina fechasse 2024 com inflação anual de 118% - uma redução de 44,5% em um ano.

O lado negativo é que, enquanto o peso se fortalecia ao ser desvalorizado abaixo da inflação, o dólar oficial ficou atrasado em relação ao custo de vida, perdendo grande parte da sua capacidade de compra.

Como resultado, surgiu um novo fenômeno para os argentinos: a inflação em dólares. Estimativas de diversos economistas locais indicam que ela superou 70% no ano passado.

Ou seja, um produto que custava US$ 100 um ano atrás, hoje, custa US$ 170.

'Dólar blue'

Não foi apenas o dólar oficial, controlado pelo governo, que perdeu seu poder de compra. O dólar paralelo, livre ou de mercado também está em níveis similares aos da época da posse de Milei, mesmo com a inflação de mais de 100% no período.

O economista Lorenzo Sigaut Gravina, da consultoria argentina Equilibra, atribui principalmente o fato a uma iniciativa bem sucedida do governo, que fez com que os argentinos introduzissem no sistema financeiro do país os dólares em espécie guardados em casa ou depositados no exterior e não declarados.

Na primeira etapa, a Argentina conseguiu o ingresso de US$ 19,023 bilhões (cerca de R$ 112,7 bilhões), segundo a Agência de Arrecadação e Controle Alfandegário (ARCA, na sigla em espanhol).

Este sucesso conteve o dólar paralelo, que se manteve a uma taxa levemente superior ao câmbio oficial - diferentemente dos anos anteriores, quando a margem era muito ampla.

Efeitos na Argentina

O "peso forte" traz pontos positivos e negativos para o país. Por um lado, o governo destaca que os salários aumentaram em dólar.

Um relatório da plataforma de empregos online Bumeran indica que o salário médio pretendido na Argentina é de US$ 1.234 (cerca de R$ 7,3 mil), acima da média regional. Um ano atrás, era um dos mais baixos da América Latina.

Mas a valorização da moeda local também gerou redução do número de turistas estrangeiros que visitam o país e aumento dos argentinos que aproveitam o "dólar achatado" para viajar para o exterior.

Dados do Indec demonstram que o número de turistas internacionais no país registrou uma redução de 19,2% em novembro passado, em relação ao mesmo mês de 2023.

Os salários na Argentina, que antes estavam entre os mais baixos da América Latina, hoje estão acima da média regional.
Os salários na Argentina, que antes estavam entre os mais baixos da América Latina, hoje estão acima da média regional.
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

A consequência mais preocupante do peso valorizado para muitos moradores locais se concentra em setores como a indústria. Agora, produzir ficou mais caro, tanto para o mercado local quanto para o exterior, o que reduz a competitividade da indústria e do setor agrícola argentino.

Some-se a isso a abertura das importações realizada pelo governo para incentivar a concorrência e reduzir os preços locais. E, como resultado, "será cada vez mais barato recorrer a produtos importados e cada vez será mais cara a produção nacional", segundo Sigaut Gravina.

Por isso, o setor industrial alertou que esta situação poderia gerar queda da produção, com consequente redução dos postos de trabalho.

Os críticos mais fortes ao governo chegam a alertar sobre um possível "industricídio", como ocorreu no país na década de 1990. Na época, o peso argentino estava vinculado ao dólar e muitas empresas acabaram fechando.

'Não haverá desvalorização'

Um dos economistas que alertaram sobre os efeitos negativos do "superpeso" foi Domingo Cavallo, ex-ministro da Economia entre 1991 e 1996, durante o mandato do presidente Carlos Menem (1930-2021). Cavallo foi apelidado na Argentina de "pai da convertibilidade".

O ex-ministro declarou em dezembro que a atual "valorização real exagerada do peso" é "similar" à que ocorreu no final de 1990 - "uma deflação muito onerosa porque transformou a recessão iniciada no fim de 1998 em uma verdadeira depressão econômica".

Na Argentina, a impressão de que o peso está artificialmente alto em comparação com seu valor real no mercado internacional vem aumentando entre a opinião pública e incomoda o presidente. Milei garante que seus críticos estão errados.

"Do meu ponto de vista, o câmbio não está atrasado", garantiu ele, em entrevista à Rádio El Observador de Buenos Aires, no início de janeiro. "É irritante e afrontosa a estupidez declarada [por Cavallo]."

A valorização do peso traz dificuldades para o setor produtivo na Argentina.
A valorização do peso traz dificuldades para o setor produtivo na Argentina.
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Para o presidente argentino, a pouca margem entre a cotação do dólar oficial e paralelo, aliada ao valor acumulado pelo Banco Central em reservas com a cotação atual (cerca de US$ 25 bilhões, ou R$ 148 bilhões), comprova que não existe atraso. "E ainda há o equilíbrio fiscal", destacou ele.

A economia do país, na leitura de Milei, não deve ganhar competitividade enfraquecendo o peso, mas desregulamentando a economia, reduzindo os impostos e melhorando o acesso ao crédito.

Para Sigaut Gravina, as palavras de Milei procuram conter a pressão para que o governo volte a desvalorizar a moeda argentina.

"Se todos nós tivermos a impressão de que existe um atraso cambial significativo, todos irão pensar que o peso, desta forma, não se sustenta", explica ele.

Mas o economista ressalta que "o principal ativo do governo atualmente é a queda da inflação - e desvalorizar implica, como efeito imediato, aumento inflacionário".

O Banco Central argentino anunciou que, a partir de fevereiro, irá reduzir a desvalorização mensal do câmbio oficial de 2% para 1% ao mês, fortalecendo ainda mais o peso.

Espera-se que esta estratégia ajude a continuar baixando a inflação, que atingiu 2,7% ao mês em dezembro passado. Mas muitos se perguntam qual será o prejuízo se o país continuar sendo "caro em dólares".

De qualquer forma, o que realmente poderia definir a cotação do dólar é o que irá ocorrer quando Milei suspender o controle de capitais, que hoje restringe o acesso à moeda americana, e deixar flutuar o peso - uma medida que o presidente prometeu tomar em 2025.

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