Congresso promulga maior reforma tributária desde a ditadura; desafio agora é regulamentação
Reforma institui o Imposto sobre Valor Agregado (IVA); governo terá 180 dias para enviar as leis complementares para regulamentação
Em sessão solene, o Congresso Nacional promulgou nesta quarta-feira, 20, a maior reforma tributária desde a ditadura militar. A emenda constitucional que muda a tributação sobre o consumo no País foi aprovada na última sexta-feira, 15, após mais de 30 anos de debate. O desafio agora será a regulamentação por meio de leis complementares, que serão enviadas pelo governo ao Legislativo em 2024.
O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), um dos fiadores da reforma, já alertou que essas legislações trarão os "detalhes mais agudos" do novo sistema e, portanto, exigirão atenção redobrada.
A cerimônia de promulgação contou a com presença de autoridades como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o vice-presidente Geraldo Alckmin, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, além dos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).
A reforma institui o Imposto sobre Valor Agregado (IVA) dual: um do governo federal e outro de Estados e municípios. O novo modelo de tributo tem por princípio a não cumulatividade plena, ou seja, impede a chamada "tributação em cascata", que hoje onera consumidores e empresas.
Serão três novos tributos: o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), substituindo o ICMS dos Estados e o ISS dos municípios; a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), que substitui PIS, Cofins e o IPI, que são federais; e o Imposto Seletivo, que incidirá sobre produtos danosos à saúde e ao meio ambiente.
Também faz parte da espinha dorsal da reforma o deslocamento da cobrança dos tributos da origem (onde a mercadoria é produzida) para o destino (onde é consumida). Com essa nova sistemática, a reforma promete colocar fim à guerra fiscal entre os Estados, na qual governadores concedem incentivos fiscais para atrair investimentos aos seus territórios - uma anomalia brasileira, que se perpetua por décadas.
"Começamos o ano com a depredação das instituições, numa tentativa contra a democracia. Hoje, estamos mostrando ao País por que é importante a democracia. Porque este Congresso está hoje entregando ao País talvez uma das suas reformas mais estruturantes nos últimos anos, nas últimas décadas, que é a reforma tributária", afirmou o deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), que relatou a PEC na Câmara.
"É hoje e aqui que mudamos a trajetória do país. É uma conquista do Congresso e do povo brasileiro", afirmou o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). "Mesmo com tanta dificuldade de se chegar num novo texto, a reforma tributária se impôs. O Congresso aprovou a reforma porque não havia mais como adiá-la", afirmou.
Com a reforma, a expectativa é de que o Brasil entre num novo ciclo de aumento da produtividade, do investimento e do Produto Interno Bruto (PIB). A mudança, no entanto, não será de uma hora para outra, porque a transição será longa.
O potencial de crescimento é considerado difícil de mensurar, mas a aposta é de que o avanço de se unificar a base de tributação entre bens e serviços será muito maior do que o prejuízo advindo das exceções aprovadas pelo Congresso e que podem levar a alíquota do IVA a uma das maiores do mundo.
Esse, inclusive, é um ponto que segue em aberto. O ministro Haddad afirmou que a Fazenda vai recalcular os impactos das mudanças feitas na Câmara, mas indicou que a alíquota-padrão deve permanecer em torno de 27,5%.
Leis complementares
O governo terá um prazo de 180 dias para elaborar os projetos que serão enviados ao Congresso para regulamentar as novas regras de tributação do consumo, mas o secretário extraordinário do Ministério da Fazenda para a reforma, Bernard Appy, planeja concluir os textos antes do fim do prazo, com um trabalho conjunto da União, Estados, municípios e parlamento.
Essas legislações vão definir, por exemplo, a alíquota do IVA dual. Também será por meio da regulamentação que ficará mais claro como funcionarão os regimes diferenciados e as alíquotas reduzidas para determinados setores - que se multiplicaram no texto em meio aos lobbies de diversos setores econômicos.
No ano que vem, governo e Congresso também definirão, por meio de lei complementar, a atuação do Comitê Gestor do IBS, que distribuirá os recursos arrecadados para Estados e municípios; a composição da cesta básica nacional, de grande interesse do agronegócio e do setor supermercadista; o sistema de cashback (devolução de tributos), previsto para a conta de luz e o gás de cozinha; e a implementação do Imposto Seletivo.
O tamanho do fundo da Amazônia e do fundo ligado à região Norte - que inclui Acre, Rondônia, Roraima e Amapá - também dependerá dessas futuras leis. Ao todo, serão quatro fundos bancados pela União que beneficiarão Estados e municípios. Um impacto expressivo no Orçamento federal, para o qual ainda não existe fonte de financiamento.
Lira já sinalizou uma possível criação de grupos de trabalho para dar celeridade à tramitação das leis complementares. O modelo de grupo de trabalho foi o escolhido pelo presidente da Câmara para acelerar o andamento da reforma este ano.
Appy disse que considera importante um trabalho conjunto preliminar entre União, Estados e municípios para a elaboração dos projetos, também com a criação de grupos de trabalho para definir os principais pontos que estarão nos textos que seguirão ao Congresso.
Esse trabalho terá três eixos principais: a parte estrutural lidará com fato gerador, base de cálculo e modelo de cobrança; o tratamento dos regimes específicos trará a definição clara dos bens e serviços nas alíquotas reduzidas; e, por fim, o comitê gestor será um projeto mais relevante para Estados e municípios do que para a União.
Do ponto de vista da tramitação, as leis complementares tendem a ser mais fáceis para o governo, já que é necessário o apoio de no mínimo 257 deputados e 41 senadores, menos que os 308 votos na Câmara e 49 no Senado para passar Propostas de Emenda à Constituição (PEC) como a da reforma tributária. A exigência de um quórum menor, no entanto, não deixa o assunto menos espinhoso e delicado.
Idas e vindas
A reforma tributária foi aprovada na última sexta-feira, 15, após a última votação na Câmara. Desde a primeira votação pelos deputados, foram cinco meses de uma tramitação marcada por embates. De um lado, lobbies de setores e atividades que buscaram alíquota reduzida e tratamento diferenciado; de outro, a disputa entre Estados ricos e pobres por mais recursos e pela prorrogação de incentivos fiscais.
Na nova passagem da proposta pela Câmara, os deputados retiraram algumas das mudanças incluídas pelo Senado, após acordo costurado entre os relatores da Câmara, Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), e do Senado Eduardo Braga (MDB-AM), com os respectivos presidentes das Casas.
Na Câmara, deputados avaliaram que Braga piorou o texto e trabalharam para retirar dispositivos introduzidos pelos senadores. Para evitar um impasse, que poderia impedir a promulgação da emenda ainda neste ano, com a contagem dos prazos, a desidratação do texto acabou ficando menor do que a desejada pelos deputados.
Em seu último texto, Ribeiro derrubou a criação de uma Cide (Contribuição de Intervenção sobre Domínio Econômico) para tributar produtos concorrentes aos produzidos na Zona Franca de Manaus, que dará lugar a um IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) preservado apenas para essa finalidade.
Aguinaldo também excluiu do texto a cesta básica estendida que havia sido incluída pelo Senado. Ele reduziu ainda as exceções ao excluir cinco setores dos regimes específicos, que têm tratamento tributário diferenciado, como os serviços de saneamento e de concessão de rodovias.
Em relação ao regime específico de combustíveis de lubrificantes, o relator retirou a possibilidade de os senadores fixarem as alíquotas e retomou essa previsão em lei complementar.
Ele chegou a suprimir do texto a equiparação salarial de auditores fiscais estaduais e municipais ao teto remuneratório de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), mas esse trecho foi retomado pela Câmara por meio de um destaque. Aguinaldo também excluiu a previsão de sabatina e aprovação no Senado do presidente do Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).
Durante a votação de destaques na Câmara, a chamada bancada da bala e os bolsonaristas conseguiram retirar a incidência do Imposto Seletivo sobre armas e munições.