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Crise da Evergrande é 'implosão controlada', diz pesquisador

Para Leonardo Burlamaqui, estudioso do desenvolvimento econômico da Ásia, gigante do setor imobiliário não é o 'Lehman Brothers da China' e provavelmente os reguladores do país vão intervir

25 set 2021 - 03h30
(atualizado às 09h37)
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Os problemas financeiros da incorporadora imobiliária Evergrande, gigante do setor da construção civil da China, espalhou tensões pelos mercados financeiros de todo o mundo, mas não devem resultar em crise sistêmica, atingindo o setor bancário, na avaliação do economista Leonardo Burlamaqui, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e pesquisador do Instituto Levy de Economia, da Faculdade Bard, nos Estados Unidos.

Prédio da China Evergrande em Pequim
24/09/2021
REUTERS/Carlos Garcia Rawlins
Prédio da China Evergrande em Pequim 24/09/2021 REUTERS/Carlos Garcia Rawlins
Foto: Reuters

Em parte, porque a crise da companhia parece uma "implosão controlada" pelos reguladores chineses. Segundo o estudioso do desenvolvimento econômico da Ásia, os problemas da incorporadora ocorrem num momento em que a China conduz mudanças estruturais na economia. O foco é o aumento relativo do peso do consumo, em detrimento dos investimentos, e a redução das desigualdades socioeconômicas. Isso resultará em desaceleração do crescimento econômico, deixando para trás os avanços em torno de 10%, e exige uma "arrumação no meio de campo", diz Burlamaqui. A seguir, os principais trechos da entrevista:

O que a crise da Evergrande diz sobre a economia da China?

Temos que colocar a Evergrande num contexto mais amplo. O presidente Xi (Jinping) assumiu, em 2013, ainda sob os reflexos da crise de 2008, após 20 anos de crescimento. É o maior fenômeno de crescimento (econômico) da história, mas isso gerou uma série de distorções. A entrada de Xi significa uma readequação do regime. Há uma série de desafios estruturais, do ponto de vista de mudar a economia e a sociedade. Xi traz três bandeiras. A primeira delas é uma cruzada anticorrupção. A segunda é o risco financeiro. O terceiro risco é o aumento da desigualdade. Com esse contexto na cabeça, entendemos melhor todo o processo de "re-regulação" que os chineses estão fazendo agora, do qual a Evergrande faz parte.

Como a incorporadora entra nesse contexto?

O setor de construção civil movimenta de 25% a 30% do PIB da China, é gigante. É um setor que se caracteriza por endividamento, tanto do ponto de vista das empresas, porque as obras são pesadas, quanto das famílias que estão comprando imóveis. É um jogo em que o crescimento e o endividamento vão paralelamente. O grande perigo é quando o endividamento começa a acelerar muito à frente do crescimento. Enquanto estamos nos endividando, mas estamos crescendo, realizando lucros, os salários estão subindo, com taxa de crescimento (econômico) de 10%, essas dívidas estão sendo pagas porque existe fluxo de caixa positivo, lucro, empregos e salário aumentando. Quando a taxa de crescimento começa a declinar, o que é o caso da China desde 2012 e 2013, surgem os problemas. A Evergrande foi um dos conglomerados mais atrevidos. Ao mesmo tempo em que fizeram muitos imóveis, contribuindo para a melhoria da situação da classe média chinesa, também se endividaram loucamente. Aí, eles caem na malha fina do Xi. Agora está na hora de arrumar o meio de campo.

Como essa arrumação atinge a companhia? Vão deixar a empresa, que não é estatal, quebrar?

Não é o momento Lehman Brothers (banco de investimentos americano que foi a falência em 2008, por causa da crise financeira iniciada no mercado imobiliário em 2007 nos Estados Unidos) da China. É uma implosão controlada pelos reguladores chineses. Estão mandando recados para Evergrande há algum tempo. Ela já submeteu aos reguladores chineses alguns planos de reestruturação e eles disseram não. Tem relatório sobre a Evergrande que tem mais de ano, mostrando que a empresa está em processo de endividamento excessivo. Vão salvar a empresa completamente? Não. A implosão controlada, provavelmente, vai tirar a direção da empresa. Provavelmente também, vão fazer uma hierarquia de credores: a família, o pequeno poupador, os fornecedores de insumos serão preservados. Para acionistas e credores internacionais, talvez, seja outra estória.

Qual a diferença com o caso do Lehman Brothers?

É o oposto do Lehman Brothers. Na China, há um processo regulatório que age dinamicamente. Estão, o tempo todo, olhando para o mercado e intervindo de maneira muito frequente. As empresas têm liberdade para se endividar, até mais do que deveriam, mas até certo ponto. Se passam do ponto, após dar um ou dois recados, o regulador entra preventivamente. O Lehman foi uma explosão descontrolada, a Evergrande é uma implosão controlada. A regulação americana não entrou. Ela foi mudar após a crise. Os bancos (americanos) estão mais capitalizados, mas fizeram isso quase por instinto de sobrevivência.

A regulação da China é melhor?

Até onde podemos ver, é muito eficiente. A China é a bolha que nunca explodiu. Temos 40 anos de crescimento, desde Deng Xiaoping (presidente que comandou o país desde 1978 e ao longo da década de 1980, implantando reformas econômicas que levaram ao crescimento acelerado), nos anos 1980. Já houve episódios de fragilização financeira. Os bancos públicos foram recapitalizados, entre 1996 e 2003, numa reforma bancária. Fizeram mais ou menos o que estão fazendo agora. Os bancos estavam em situação precária e foram recapitalizados antes de entrarem em situação de instabilidade financeira aguda. Desde então, não teve nenhuma crise financeira pesada, com contágio. A crise internacional que veio dos EUA e da Europa, em 2007 e 2008, a China conteve de maneira brilhante.

A experiência do Japão, com crise imobiliária no início dos anos 1990, não pode se repetir?

O Japão ensinou à China muito do que não fazer. O banco central japonês estimulou a bolha imobiliária ao longo dos anos 1980. O iene se valorizou muito. Foi quando os japoneses começaram a viajar loucamente pelo mundo. O banco central administrou essa bolha de maneira muito ruim no começo. Agiram depois, e não antes, e demoraram muito tempo para conter o estrago. A bolha japonesa estourou no início dos anos 1990 e eles passaram uma década num pântano financeiro de reestruturação de ativos e passivos.

O que a experiência de regulação na Ásia sugere sobre o papel do Estado na economia?

A transformação estrutural da Ásia, mudando a composição do organismo econômico, partindo do Japão, coloca um tijolo nas mãos de quem interpreta o desenvolvimento econômico capitalista como um processo sempre liderado pelos mercados, no qual o Estado teria pouco ou nada a fazer. Como dar conta desse desenvolvimento espetacular, não só da China, mas de todos esses países (asiáticos), sem entender o papel absolutamente crucial do Estado na economia? É um Estado que podemos chamar de pró-ativo e empreendedor. Pode ser proprietário de empresas, ou não. Certamente, exerce um controle significativo sobre o setor financeiro, no sentido de colocá-lo a serviço de um projeto de desenvolvimento, com transformação estrutural e inclusão social, entendendo isso como tema de interesse público, que deve estar a cargo de uma autoridade pública. A China faz isso de uma forma turbinada, anabolizada.

Não há dicotomia entre Estado e setor privado?

Não tem isso. Se alguém vem de uma tradição marxista ortodoxa vai ter dificuldade para lidar com a China. A China se autodeclara socialista, mas não é esse socialismo (marxista). O Estado é uma autoridade pública que estabelece as fronteiras entre o público e o privado. Ao desenhar e redesenhar continuamente essas fronteiras, cria mercados. Nada mais longe do que aquela ideia de privatizações, em que o Estado fenece, morre, e nascem os mercados. Muito pelo contrário. Quem cria os mercados é o Estado. Agora, ele pode atuar mal. Não quer dizer que, porque está lá, ele não vai fazer mal feito.

No Brasil, a participação do Estado atrapalhou ou ajudou?

O Estado é importante tanto para explicar o desenvolvimento quanto o subdesenvolvimento, porque ele também pode atrapalhar. O Estado não está sempre dando certo nem sempre é solução, mas ele está sempre lá. Tentar entender desenvolvimento ou subdesenvolvimento sem Estado é um beco sem saída. A pergunta ruim é: mais ou menos Estado? A pergunta mais inteligente é: que tipo de Estado? Olhando para trás, já fomos uma China, já crescemos a taxas de 8%, 10%, 14% ao ano. De 1930 a 1980, os três países que mais cresceram foram União Soviética, Japão e Brasil. Já tivemos um Estado com bastante competência para promover o crescimento. Onde falhamos? O nosso Estado, democrático ou autoritário, nunca resolveu nossos problemas sociais. Agora, crescer, nós crescemos, mas fomos sistematicamente interrompidos por estrangulamentos de natureza financeira, processos de fragilização financeira externa, com crises de dívida, e interna, com crescimento muito rápido da inflação. O que nos estrangulou não foi ter mais ou menos Estado. Foi a forma como manejamos, não tão bem, a dimensão financeira do crescimento. Onde temos que aprender? A ter um Estado que atue para que as finanças tenham um papel importante para financiar o desenvolvimento. Deveríamos prestar muito mais atenção à Ásia e à China, com olhos mais simpáticos.

Estadão
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