Dilma faz ajuste 'bem calibrado', elogia Delfim Netto
Ex-ministro da Fazenda reprova 'contabilidade criativa', mas elogia pacote de austeridade fiscal para retomar crescimento
Até dezembro de 2012, uma das vozes de fora do governo mais ouvidas pela presidente Dilma Rousseff era a do economista Antônio Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda (1967-74), do Planejamento (1979-85) e professor emérito da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (USP).
No entanto, críticas pesadas à forma como o governo tratou as contas públicas ─ "uma lambança fiscal que transformou dívida em superávit", na visão de Delfim ─ fizeram o Palácio do Planalto se distanciar do economista, e vice-versa.
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Delfim Netto segue crítico ao que chama de "alquimia" das contas públicas, mas acredita que o governo está no rumo certo com as medidas de ajuste da economia adotadas pelo ministro da Fazenda, Joaquim Levy.
Em entrevista à BBC em seu escritório em São Paulo, o ex-ministro disse que Dilma "não disse a verdade" durante a campanha eleitoral sobre suas intenções de fazer ajustes econômicos, mas que se mostrou "corajosa" agora para seguir com esse caminho.
Para o economista, 2015 será um ano para "construção de uma ponte" para o crescimento sustentável. Confira abaixo os principais trechos da entrevista:
Qual a diferença do que o governo fez em 2014 para o que está fazendo agora?
Delfim Netto -
Em 2014, o governo lançou mão de uma política que chamava de anticíclica, mas que, na verdade, era uma política estimuladora dos gastos do governo. O processo eleitoral estava se desenhando de forma muito difícil e o governo criou certas facilidades. Deu muito subsídio, muita redução de impostos, diminuiu a taxa de juros e ampliou o crédito do BNDES. Fez todas as grandes facilidades para os setores público e privado, o que produziu um desequilíbrio fiscal muito grande. No fim das contas, 2014 terminou com déficit nominal de 6,7% do PIB ─ algo que não era visto no Brasil há duas ou três décadas.
Mas terminou o processo eleitoral e ficou claro que aquilo não tinha condição de continuar. Na minha opinião, Dilma não revelou a verdade durante a campanha eleitoral. Pelo contrário, negava que fosse necessário qualquer ajuste. Criticava o opositor, dizendo que ele (o tucano Aécio Neves) queria fazer o ajuste, e quando foi reeleita ela própria fez o ajuste. Ou melhor, está tentando fazê-lo.
Trata-se de um ajuste preliminar fiscal que tem como objetivo preparar o país de novo para voltar a um crescimento razoável. Agora sem o equilíbrio fiscal é impossível ter um desenvolvimento como queremos ─ um desenvolvimento com inclusão social e com equilíbrio inflacionário, uma inflação próxima do objetivo da meta, que é 4,5% e sem uma redução do déficit em contas correntes.
Por que é tão importante ter essas contas organizadas neste momento?
Delfim Netto -
Por uma razão muito simples. No fundo, o indicador mais importante que o mundo observa é a dívida bruta em relação ao PIB. A taxa brasileira passou de 53% para 63% e está caminhando para um endividamento que obviamente é insustentável e que exige taxas de juros cada vez mais elevadas. Então a correção preliminar é no fiscal. Por quê? Porque se eventualmente houver uma perda de confiança no Brasil e o Brasil vier a perder o grau de investimento, será preciso fazer um ajuste de qualquer forma. O mercado vai impor o seu ajuste.
Ora, um ajuste imposto pelo mercado será simplesmente muito mais dramático do que um ajuste programado, estudado e por meio do qual os custos podem ser distribuídos de forma mais equilibrada. Acredito que, se o mercado impuser o seu ajuste, o crescimento demorará muito mais tempo para se estabelecer.
Haverá crescimento em 2015?
Delfim Netto -
Não. Inclusive é preciso dizer claramente para a sociedade que este é um ano em que estamos construindo uma ponte para voltar ao crescimento.
Esse ajuste não vai significar um sacrifício desmedido, porque ele está razoavelmente bem calibrado. O governo está distribuindo com certa equanimidade os custos sobre a sociedade, tanto no empresarial quanto nos trabalhadores. As correções têm sido feitas mais sobre alguns abusos, como problemas de seguro-desemprego, pensões, etc. Mas o governo não tem feito nada, realmente, que represente um ajuste brutal. Pelo contrário, tem feito coisas com bastante inteligência.
A correção do câmbio já vai ser um sinal na direção correta, porque nunca houve queda de demanda de produtos industriais. Houve uma queda de demanda da indústria brasileira, que foi substituída pela importação por causa da supervalorização do real.
Esse é outro erro importante porque, no ano passado mesmo, a taxa de câmbio sempre foi usada para combater a inflação. Isso é um erro mortal. Todos os países que se meteram nisso se deram muito mal. E no caso brasileiro, o resultado foi desastroso. Foi a destruição, realmente, da indústria de manufaturados no Brasil, que acho que agora vai começar a ser retomada.
Outro problema seria o aumento de investimentos. Não vai se recuperar o investimento tão cedo, enquanto não tiver uma perspectiva de crescimento, mas no setor público, eu acho que o ministro (do Planejamento) Nelson Barbosa está preparando projetos muito melhores para pôr em leilão, com leilões muito mais eficientes, e (indica) que vai aceitar a taxa de retorno afixada no leilão.
Então tenho a convicção de que esse conjunto de ministros ─ nas Finanças, o (Joaquim) Levy; no Orçamento, o Nelson Barbosa; no setor industrial, o Armando (Monteiro) que foi presidente da CNI, conhece profundamente o setor, e que está estimulando a indústria nacional e preparando um programa de exportação; e a ministra da Agricultura, Katia Abreu, que tem uma consciência muito clara de que a política agrícola precisa combinar a agricultura, a pecuária e a floresta, para tirar proveito dos ganhos de dimensão desse setor.
Se tivermos sucesso, quanto mais rápido for o sucesso no ajuste fiscal, mais rapidamente vamos chegar do outro lado da ponte e, quem sabe, conseguirmos um crescimento mais razoável.
Acredito que 2015 seja o ano de construção dessa ponte. Não espero nada de muito extravagante, acho que a inflação vai ficar mesmo em torno de 7,5% ou 8%, o PIB provavelmente não crescerá ou até é provável que caia um pouquinho. Não teremos nenhuma redução muito importante do déficit em contas correntes, mas eu acho que o superávit primário ficará em torno de 1% ou 1,2% ─ que não seria o suficiente para inverter a tendência da relação dívida/PIB, mas é suficiente para indicar para as agências de risco que nós entramos no caminho certo.
A ponte de que o senhor fala vai levar o Brasil para onde? E esse destino será alcançado quando?
Delfim Netto -
Depende da velocidade que a sociedade aceite a necessidade do ajuste. Se todos colaborarem, o prazo do ajuste será mais curto. Quando os primeiros sinais do ajuste aparecerem, imagino que haverá uma mudança de comportamento da sociedade, que estará terminando o período de maiores dificuldades e a produção industrial começará a se recuperar.
Diria que o ano terminará da seguinte forma: ainda que os indicadores sejam muito ruins, na margem todos eles estarão invertendo o seu sinal. E, portanto, acho que poderemos ter um ano melhor em 2016. O importante é o quão rápido será feito o ajuste, quão rápido a sociedade entender que o ajuste é necessário e o quão razoavelmente moral ele será - estou falando de distribuir os custos de maneira equânime entre o trabalho e o capital -, mais rapidamente voltaremos ao crescimento.
O câmbio superou, recentemente, a barreira de R$ 3. Esse novo patamar é o desejável para o Brasil?
Delfim Netto -
Quando se fala de câmbio, é impossível dizer qual é o patamar (desejado). Sem dúvida alguma, tivemos o câmbio supervalorizado durante muitos anos. O câmbio agora está livre e está caminhando para o seu equilíbrio. É importante nesse ponto conservar o grau de investimento. Porque a perda do grau de investimento produziria um overshooting no câmbio ─ ele iria lá para cima e depois viria se ajustando para baixo. Mas produzindo um desequilíbrio muito grande nas finanças das empresas privadas.
Esse é um ano bom para a indústria brasileira então? Pode ser uma virada para a indústria?
Delfim Netto -
Acredito que um ano bom não será. Será um ano de recuperação. A indústria hoje ainda está em um nível inferior ao que ela estava quando começou a crise, em 2008. Então acho que ela vai se recuperar um pedaço da perda, antes de se tornar positiva.
Muito se tenta no Brasil hoje atribuir culpas pelo que está acontecendo. A presidente falou na televisão que a culpa foi da crise internacional, que durou mais tempo do que se esperava, combinado com uma crise climática. Depois houve uma sinalização dela de que o governo "talvez tenha errado na dosagem". Na sua avaliação, quais fatores estão levando o governo a agir assim agora?
Delfim Netto - O cenário externo foi importante e é importante. Mas é importante para todos os outros países latino-americanos. Quando se compara o Brasil com os outros países da região, o fator externo tem importância, mas não é causa básica do que está acontecendo. O que aconteceu realmente foi um erro interno.
O governo procurou uma explicação aceitável. A última, aliás, é muito curiosa e segue a linha de Tocqueville (Alexis de Tocqueville, pensador francês do século 19) para todo sujeito que comete seus erros. Ele desenvolve uma narrativa em que diz: "Eu não errei. Eu, na verdade, errei deliberadamente para melhorar a tua vida. Eu abusei da política monetária, cambial e fiscal, mas era para você não perder o emprego. Então você que até agora teve emprego fica me criticando. Eu errei sim, mas eu errei para ajudar você".
Em geral, a liderança não se contenta em dizer simplesmente isso. Ela diz: "Eu não errei. Você pensa que eu errei, mas eu estava tentando ajudá-lo". A narrativa prossegue dizendo: "Mas era inevitável. Se eu não tivesse feito isso, você teria sido morto".
O senhor, no primeiro mandato da presidente, era conhecido por ter um bom trânsito com o governo. Como está sua relação com o Planalto agora?
Delfim Netto -
Minhas relações com o governo diminuíram muito depois de dezembro de 2012, porque fui muito crítico com aquela lambança fiscal feita no final de 2012, em que dívida pública foi transformada em superávit primário. Aquilo, na minha opinião, foi uma alquimia muito grande para ser justificada. De forma que desde lá tenho tomado muito mais cuidado com quem apoio…
Mas é importante compreender o seguinte: a Dilma mudou. Com todos os seus problemas, acho que é preciso reconhecer que ela teve coragem, pois houve abusos em 2014. E houve também algumas vantagens. Realmente ter um desemprego pequeno é uma coisa importante ─ para a solidariedade da sociedade. Não houve no Brasil nenhum desemprego que destrói as famílias, de forma que não existem só erros. Tem também acertos. E tem custos obviamente. Mas Dilma teve a coragem de, no momento em que percebeu isso, ter mudado em 180 graus. É uma mudança de 180 graus na política. E isso, na minha opinião, fala a favor dela.