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'Dólar Coldplay' e inflação de 83%: Entenda a crise na Argentina

País sofre com escassez da moeda americana e governo não tem credibilidade para adotar um plano de estabilização econômica

27 out 2022 - 05h51
(atualizado em 31/10/2022 às 17h05)
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A falta de reservas é um dos grandes entraves do país
A falta de reservas é um dos grandes entraves do país
Foto: Reprodução/Unsplash/Alexander Grey

A notícia de que a Argentina criou o "dólar Coldplay" e o "dólar Catar" ganhou destaque na internet e atraiu a atenção dos brasileiros. A adoção de cotações mais elevadas para a moeda americana para atividades não essenciais é uma tentativa do governo argentino de controlar o acesso à divisa em meio à escassez de dólares no país.

A medida veio em um momento em que as expectativas em relação à economia argentina voltam, mais uma vez, a se deteriorar - menos de três meses após o político Sergio Massa chegar ao Ministério da Economia. Massa assumiu como ministro no fim de julho, após a demissão da ex-ministra Silvina Batakis, que, 24 dias antes, havia substituído o ex-ministro Martín Guzmán.

"(Em julho), a Argentina estava à beira do precipício. Com Massa, foi como se nos afastássemos uns três passos desse precipício", diz o economista argentino Andrés Borenstein, da consultoria EconViews.

Desde que passou a liderar a pasta, o político fez um reperfilamento da dívida em pesos, adiando datas de vencimento. Isso garantiu acesso a novos financiamentos internos, apesar de eles virem com taxas de juros mais altas.

"Ele conseguiu atenuar a crise cambial e financeira. O governo estava quase sem acesso ao mercado (financeiro). Massa adotou micro medidas fiscais e conseguiu um pouco de financiamento em dólares e pesos. O risco não desapareceu, mas a expectativa melhorou um pouco - ainda que tenha voltado a piorar recentemente", acrescenta o economista Dante Sica, sócio da consultoria Abeceb e ministro da Produção do governo Mauricio Macri.

Massa congelou parte dos gastos e anunciou um aumento nas tarifas de luz e gás (que hoje contam com subsídios governamentais), na tentativa de ajustar as contas públicas. Parte dessa alta nas tarifas, no entanto, foi recentemente postergada.

Em setembro, o ministro criou o "dólar soja". Como os agricultores estavam retendo a produção enquanto esperavam uma desvalorização do peso, o governo estabeleceu que o dólar negociado na exportação de soja valeria 30% a mais. Assim, estimulou exportação e, consequentemente, a entrada de dólares no país, aumentando as reservas do Banco Central.

A falta de reservas é um dos grandes entraves do país. Sem acesso a crédito no mercado internacional por causa dos vários calotes e da desconfiança dos investidores, a Argentina não consegue acumular divisas.

Antes de Massa assumir, as reservas líquidas eram praticamente nulas. Hoje, após a criação do "dólar soja" e depois de um empréstimo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), elas se aproximam de US$ 5 bilhões, segundo cálculos de especialistas. Ainda é um nível bastante baixo, avalia o economista Guido Lorenzo, da consultoria argentina LCG, mas ao menos é um patamar suficiente para manter as importações necessárias para a economia funcionar.

Também por conta do problema do baixo nível de reservas, surgiram o "dólar Catar" e o "dólar Coldplay". Mais caros que o "dólar padrão", eles dificultam o acesso da população ao câmbio, numa tentativa do governo de manter dólares para pagar, por exemplo, a importação de energia.

Para os analistas, o plano econômico de Massa era basicamente lançar mão de medidas que evitassem a hiperinflação e o calote. Na visão de Borenstein, era um plano para fazer o país sobreviver até as eleições presidenciais, marcadas para o último trimestre de 2023.

O problema agora é que a expectativa de que Massa teria apoio da vice-presidente Cristina Kirchner foi diluída. Em agosto, quando o país estava à beira do caos, Cristina deu carta branca para o ministro. Agora, com a situação um pouco menos descontrolada, ela voltou a trabalhar como se fosse da oposição e a criticar publicamente a inflação, explica Borenstein.

Inflação de 83%

Nos últimos 12 meses até setembro, a inflação na Argentina teve alta de 83%. No acumulado do ano, chega a 66%. O país costuma emitir moeda para bancar seu déficit fiscal, o que gera inflação. Neste mês, Cristina pediu uma intervenção do governo "mais precisa" para controlar os preços, porque as empresas de alimentos "aumentaram muito suas margens de rentabilidade".

O país já adota, há quase dez anos, o programa "Preços Cuidados", em que o valor de produtos tidos como essenciais é reajustado pelo governo após negociação com associações de supermercados. Agora, a discussão no país gira em torno da impressão dos preços nos rótulos das embalagens, para garantir que os varejistas não cobrem mais que o valor fixado pelo programa.

"Havia uma expectativa de que o novo ministro teria mais apoio de Cristina. Isso foi se perdendo recentemente. A ausência de medidas mais consistentes, que pudessem melhorar as expectativas de médio prazo, também prejudicou", acrescenta Borenstein.

Para o economista Livio Ribeiro, especialista em economia internacional do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV/Ibre), a adoção de medidas mais concretas e de um plano de estabilização na Argentina será algo difícil de se fazer enquanto o ambiente político for instável. "Por enquanto, não há plano de reorganização econômica. A ideia é sempre ganhar tempo. Mas o país está nesse ciclo há 25 anos, com pequenos interlúdios."

Os economistas convergem na ideia de que não é possível implementar um plano de estabilização agora, dado que ele não teria credibilidade, com as divisões que há no próprio governo. O presidente Alberto Fernández está desacreditado há meses - seu nome para o Ministério da Economia (Guzmán) caiu em julho com a ajuda de Cristina Kirchner. Diante desse cenário, Massa vai empurrando a economia "com a barriga", como diz Sica, da Abeceb.

Por enquanto, apesar da inflação nas alturas, a economia tem avançado com a retomada da atividade no pós-pandemia - o Fundo Monetário Internacional (FMI) estima alta de 4% no PIB deste ano. O nível de emprego vem se recuperando, mas com grande parte da população no mercado informal.

Essa recuperação, no entanto, começa a perder fôlego e há sinais de que 2023 pode ser ainda mais difícil não só pela deterioração econômica global, mas também pelas condições climáticas. Com a seca, a colheita de trigo, que começa em dezembro e segue até fevereiro, deve ser 30% menor do que o projetado. Isso significa um volume menor para exportar e, consequentemente, menos dólares na economia.

Estadão
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