Empreender ou ser CLT? Estágio, segurança e capital orientam desejos dos jovens no mercado
Cruzamento de pesquisas mostra que, mesmo naqueles grupos em que há maior desejo por empreender, os jovens não costumam ser afeitos ao risco
Aos 16 anos de idade, Kayo Manuel já ajuda nas contas de casa. Estudante em uma instituição de Ensino Técnico, ele optou por estagiar na área de Tecnologia da Informação (TI) no turno oposto ao das aulas, na própria escola onde também cursa o Ensino Médio. A bolsa de R$ 603 mais o vale-transporte vem a calhar. Kayo experimenta certa independência, pode sair de casa sem pedir dinheiro à mãe e ainda é responsável por alguns boletos.
A um ano de se formar, a experiência no estágio ainda não lhe deu confiança sobre qual carreira quer seguir. Kayo flerta com a Psicologia e com Letras. Mas, de uma coisa ele acredita ter certeza, não quer empreender.
"Eu preferia mais ter uma função já pré-definida dentro de uma empresa do que eu ter que resolver esse um bilhão de coisas como empreendedor e como dono próprio do negócio" -- Kayo Manuel, 16 anos
O sentimento de Kayo, talvez justificado por outras razões, é o mesmo da maioria entre os jovens estagiários ouvidos pelo levantamento do Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE) deste ano. Já são 15 edições, mas esta foi a primeira em que foi perguntado aos entrevistados sobre as expectativas em relação ao futuro. Para 51%, o desejo é ser efetivado na empresa em que trabalham e, para outros 20%, ser contratado no modelo CLT. Apenas 3% responderam que querem empreender.
O CIEE é uma organização social que, como explica a Superintendente da área de Assistência Social e Filantropia, Maria Nilce Mota, “faz a ponte entre o mundo do trabalho e a educação”. O próprio Ministério do Trabalho informou ao Terra que dados sobre o universo de estagiários poderiam ser buscados diretamente com o CIEE, que é fonte de levantamentos feitos pela pasta. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) não tem uma categoria específica sobre estagiários em suas pesquisas.
Para Maria Nilce, o baixo interesse pelo empreendedorismo foi surpreendente. “A gente observa muito, principalmente na imprensa e nas mídias sociais, uma ideia de que os jovens estão todos interessados em serem empreendedores. E essa pesquisa desmistificou isso”, afirma.
O levantamento traz ainda que 63% discordam de que no futuro ninguém mais vai ter um trabalho registrado em carteira e 60% discordam de que o trabalho com registro em carteira tira a liberdade das pessoas. “Ou seja, como eles estão em bons programas de estágio, eles acreditam que o trabalho com registro em carteira é uma possibilidade de futuro”, considera Maria Nilce.
Outro recorte
Mas afirmar que os jovens, em geral, não querem empreender pode ser incorreto. A pesquisa do CIEE traz um claro recorte de pessoas que já estão vivenciando o mercado de trabalho formal, mesmo que ainda não atuem como contratadas. Foram ouvidos quase 12 mil estagiários, com idade média de 26 anos entre os que estão no Ensino Superior, e de 18 anos entre os que estão no Ensino Médio ou Técnico. A bolsa-auxílio média foi de R$ 1.108,10.
Por outro lado, uma pesquisa do Sebrae deste ano mostrou que o número de pessoas entre 18 a 29 anos empreendedoras cresceu 23% no Brasil em 2023. Os jovens representavam 16,5% dos cerca de 30 milhões de empreendedores do país naquele ano.
Já uma pesquisa feita pela plataforma de serviços financeiros Rico, divulgada também este ano, mostrou que 19% dos jovens na faixa etária de 24 a 35 anos que já fizeram algum tipo de investimento tem como meta de longo prazo acumular capital para investir em um negócio próprio.
O percentual é consideravelmente mais alto do que entre os estagiários ouvidos pelo CIEE. Ainda assim, a pesquisa Rico reforça a busca por segurança entre seus entrevistados.
- Cerca de 71% deles afirmaram que valorizam a segurança na hora de investir. A maioria (50,35%), inclusive, investe na poupança, um dos investimentos de menos riscos e menos rentáveis. Dos 1.008 homens e mulheres ouvidos, 59,2% são empregados em tempo integral.
Para a técnica de planejamento e pesquisa do Instituto de Pesquisa e Economia Aplicada (IPEA), Maria Andreia Laranjeiras, o brasileiro culturalmente tem uma tendência a preferir o emprego formal com carteira assinada, mas ela reforça que não há nenhum estudo detalhado sobre esse ponto.
As garantias dadas pelos empregos com carteira assinada trazem certo “conforto” ao trabalhador, considera.
“Quem você tem hoje que vai empreender? Ou é aquela pessoa que realmente tem uma vocação e por isso ela estuda mercado, ela sabe exatamente o que ela quer fazer, ela conhece o mercado que ela vai entrar, ela sabe exatamente que atividade ela vai desempenhar nesse setor que ela está entrando, que é a minoria. A grande maioria das pessoas acaba empreendendo por uma necessidade”, afirma Maria Andreia.
Estágio e mudança de vida
A pesquisa do CIEE traz um outro dado de destaque: cerca de 10% dos estagiários são os únicos responsáveis pelas contas de casa. O percentual é melhor do que o do ano anterior, quando foi de 11%. Ainda assim, está acima de quando a pergunta foi feita pela primeira vez, em 2019, quando marcou 6%.
“O que a gente observa é que a recuperação econômica está acontecendo, mas ela é meio lenta”, considera Maria Nilce Mota, do CIEE, ao comparar com o resultado pré-pandemia.
Por outro lado, a pesquisadora do IPEA, Maria Andreia, ressalta que não é possível fazer uma correlação específica com a pandemia, já que a abrangência dos dados é curta. A técnica explica que seria preciso que a série histórica começasse antes de 2019 para ter melhor compreensão sobre os efeitos da pandemia de covid-19 nesse dado.
O fato é que a cada 100 estagiários, 10 carregam o peso de sustentar uma casa. Essa é a realidade de Bianca Campanha, de 30 anos, estudante de Administração e mãe de duas crianças. Com a bolsa-auxílio de R$ 1.460 de seu estágio em uma ONG, Bianca é a principal provedora do seu lar.
“Eu trabalhei um bom tempo na área de recepção. Como é uma área que eu não queria para mim, eu decidi entrar na faculdade, também para dar um futuro melhor para os meus filhos, porque hoje em dia a gente sabe que uma faculdade é essencial”, afirma.
O estágio é visto por ela como uma porta de entrada para uma verdadeira mudança de vida. Moradora de São Paulo capital, Bianca está na região em que os estágios melhor remuneram e mais oferecem benefícios aos estudantes. Ela mesma paga o mercado com o vale-refeição que recebe da empresa. Ainda tem o auxílio home-office, já que o trabalho é híbrido.
É claro que, no final das contas, a soma entre a bolsa-auxílio e os benefícios ainda está longe de chegar à remuneração média real do brasileiro, atualmente em R$ 3.255, segundo a Pesquisa Nacional por Domicílio (Pnad) referente ao trimestre encerrado em outubro. Para fechar as despesas, Bianca conta com a pensão alimentícia de um dos filhos e a ajuda da mãe e da ex-sogra.
Nos dias em que tem aula e estágio, Bianca sai de casa às 6h30 e só chega próximo às 23h. Mas diz que vale a pena. “Eu estou sendo reconhecida, não sou uma simples estagiária. Eu estou sendo reconhecida na área onde eu estou, pelos meus líderes, pela minha supervisão, então vale a pena. O meu objetivo a longo prazo, com certeza eu tô caminhando para ele, eu estou no primeiro degrau, que é ser estagiária, mas daqui uns dias eu tenho certeza que eu vou estar onde eu almejo”, diz.
Seu sonho é chegar a um cargo de gestão, na mesma empresa em que já trabalha. Com direito a carteira assinada e tudo.