Huawei é 'ponta do iceberg' na briga comercial EUA-China
Para analistas, acusações contra segurança dos smartphones da chinesa podem fazer sentido, mas ponto principal é disputa econômica
Os celulares da Huawei voltaram às lojas brasileiras nesta sexta-feira (17). A empresa está no Brasil desde 1998, atuando na área de infraestrutura de telecomunicações, mas havia cessado sua operação de smartphones em 2013.
Esse movimento da gigante chinesa ocorre em meio a briga comercial entre Estados Unidos e China que tem a Huawei como um dos personagens principais.
Em 2018, o FBI, a CIA e a NSA aconselharam os cidadãos americanos a não utilizar aparelhos da Huawei. A justificativa era de que, segundo eles, os aparelhos da fabricante chinesa apresentavam problemas de segurança de dados do usuário e que poderiam ser usados pelo governo chinês para espionagem.
Questionada pelo Terra sobre os cuidados que tem com os dados dos usuários, a Huawei disse que não se manifesta sobre o assunto.
Na quarta-feira (15), o presidente americano Donald Trump assinou uma decisão executiva que proíbe empresas americanas de utilizar equipamentos de telecomunicação provenientes de fabricantes que representam risco à segurança nacional.
O Departamento de Comércio dos Estados Unidos ainda confirmou que colocou a fabricante chinesa e 70 afiliadas em uma "lista negra".
A Huawei, por sua vez, publicou uma carta aberta para a mídia dos Estados Unidos, intitulada “Não acredite em tudo o que você ouve. Venha nos visitar”. Diz a carta: “Fornecemos equipamentos e smartphones inovadores e seguros de redes de telecomunicações para mais de três bilhões de pessoas em todo o mundo.”
Mundialmente, a empresa já é a segunda maior fabricante de smartphones, à frente da Apple. A crescente ascensão da indústria de ponta na China, que cada vez mais ameaça a hegemonia econômica dos Estados Unidos, levantam dúvidas de que as acusações à Huawei estariam embebidas numa guerra comercial entre as duas potências.
“A Huawei é o ponta do iceberg”, diz Giorgio Schutte, professor de relações internacionais e economia da UFABC. Para ele, o que está em jogo é o “domínio da tecnologia do futuro”. A Huawei também está envolvida com pesquisa e desenvolvimento de 5G, a próxima geração de telecomunicação móvel, que promete maior velocidade.
“A economia depende em última instância na tecnologia”, diz Schutte. “A briga não é sobre comércio, não é sobre uma empresa específica. É a ponta de um iceberg de uma disputa que vai durar muito tempo sobre o futuro da economia política internacional”.
“A versão dos Estados Unidos é que são história separadas: a guerra comercial entre EUA e China é uma coisa e a disputa especificamente com relação à Huawei é outra -- tem a ver com segurança nacional", diz Yi Shin Tang, professor de Relações Internacionais da USP.
Mas a China não concorda com essa história, diz Tang. "Eles [chineses] entendem que a pressão [dos Estados Unidos] sobre a Huawei é uma forma de barganhar melhores condições de tarifas com a China, que tem adotado uma postura reativa".
Para Wagner Meira, professor de ciência da computação da UFMG, as acusações contra os celulares da Huawei são plausíveis. “O discurso [dos EUA] é amparado tecnicamente”, diz.
Porém, evocando Edward Snowden e escândalo da NSA (National Security Agency), Meira diz: “não acredito que haja um sistema absolutamente seguro hoje em dia ”, diz.
Embora a briga com a Huawei possa estar envolvida numa questão estratégica e comercial mais ampla, "ninguém mais tem privacidade, isso é um fato", diz Meira, se referindo aos rastros digitais que deixamos ao navegar na internet.
“Para os chineses, [a guerra comercial com os EUA] é uma questão fundamental porque o Partido Comunista chinês só tem hegemonia e estabilidade no país enquanto ele conseguir garantir crescimento econômico. Portanto, essa questão de disputa econômica para o partido comunista é fundamental para sua própria manutenção no poder”, diz Giorgio Schutte.
Do “xing ling’ ao premium
Para muitos brasileiros, produto chinês ainda é sinônimo de baixa qualidade ou falsificação. A tendência é que cada vez mais essa ideia não corresponda com a realidade, diz Paulo Gala, diretor-geral da Fator Administração de Recursos e professor da FGV-SP.
“O Estado chinês conseguiu promover uma estratégia de desenvolvimento que catapultou as empresas chinesas pra fronteira tecnológica em muitos setores. A Huawei é um belo exemplo disso”, diz.
Essa mudança de patamar é comum no processo de desenvolvimento econômico. Ainda no século 19, o mesmo aconteceu com os produtos industriais alemães, que surgiam para competir com os ingleses, e eram vistos como de baixa qualidade e pouco confiáveis. Com o Japão, a mesma história: “os primeiros Toyotas foram ridicularizados”, diz Gala.
As regras do jogo, sobretudo entre os países asiáticos que se desenvolveram nos últimos 50 anos seguem uma trajetória semelhante: cópia, espionagem industrial, não respeitar patentes, engenharia reversa. Daí, as empresas desse países aprendem e passam a produzir equipamentos próprios, colocaram marcas e eventualmente conquistam o mercado das indústrias que eles copiaram.“Um movimento impressionante de aprendizado tecnológico”, diz o economista.
E o Brasil, como fica?
O Brasil, enquanto produtor no mercado de eletroeletrônicos e telecom, já ficou para trás há muito tempo, é praticamente irrelevante, diz Gala.
O país só ganha destaque enquanto mercado consumidor. A China já é o principal parceiro comercial de grande parte dos estados brasileiros, segundo dados do Ministério da Economia, à frente dos Estados Unidos.
No curto prazo, é benéfica para o consumidor a vinda da gigante chinesa ao mercado brasileiro de smartphones, segundo o economista. O mercado mundial de celulares é quase um duopólio da Samsumg e da Apple, com pouca competição e muita margem de lucro. "Os chineses sem duvida são fortíssimos candidatos para entrar tentando 'morder' um pouco desse lucro desse duopólio", diz Gala.
Quanto à guerra comercial que os Estados Unidos travam com a China, o saldo líquido é negativo, diz o economista.
"[A guerra comercial] está desacelerando o comércio mundial, os preços de commodities estão sofrendo, as economias emergentes tão sofrendo. Então o saldo líquido para o Brasil vai ser bem ruim", diz.