Inflação exorbitante, juros nas alturas e população na pobreza: o retrato da Argentina de Kirchner, Macri, Fernández e Milei
Falta de estabilidade política e fiscal, além da oscilação entre políticas de direita e de esquerda, contribuíram para o cenário; entenda
Uma combinação de fatores específicos nos últimos anos levou a economia da Argentina aos frangalhos. O país vive uma das piores crises econômicas de sua história, com uma inflação exorbitante, câmbio desvalorizado, taxas de juros nas alturas e parte da população vivendo na pobreza. Enfrentar esse cenário, que não é recente, tem sido um desafio para os residentes.
“As coisas estão muito complicadas na questão da economia. Muitas pessoas estão na rua, ficando sem moradia. Eu estava entrando no meu prédio e tinha um cara do lado de fora falando que há seis dias perdeu a casa, que não tinha nada, não tinha onde dormir, não tinha nem o que comer”, relatou em entrevista ao Terra o argentino José Silvano, de 31 anos, que mora no bairro de San Telmo, em Buenos Aires.
Com a moeda desvalorizada e os custos dos produtos altos, os argentinos fazem o que podem para driblar as dificuldades. Segundo o argentino, as famílias mais estruturadas costumam estocar dólar em casa para se proteger de uma maior desvalorização do peso. Os mais jovens, por outro lado, têm se interessado pelo mercado financeiro e investido em criptomoedas.
Viver na Argentina não está sendo difícil apenas para os argentinos. A brasileira Giseli Alves, de 27 anos, faz mestrado na Universidade de Buenos Aires (UBA) e morou na Argentina. Ela conta que voltou para o Brasil mesmo ainda não tendo concluído os estudos em razão da perda do poder de compra e dos valores das coisas que dispararam nos últimos meses.
“Eu comecei o meu mestrado em 2022, com o governo de [Alberto] Fernández. Quando entrei, pagava 25 mil pesos (cerca de R$ 146) à matrícula. Agora, a matrícula custa 69 mil pesos (aproximadamente R$ 402). A gente já fez greve de entregar trabalho e tudo para ver se não havia como diminuir essas matrículas. E tem ainda o custo da moradia, que é alto e a maioria das imobiliárias exigem o pagamento em dólar para estrangeiros”.
Como a brasileira, há também uma onda de jovens argentinos que saíram da casa dos pais para irem estudar na UBA e que estão voltando para casa por não conseguir mais bancar os custos de morar na capital. Na cidade de Buenos Aires, um apartamento de um quarto custa para um cidadão argentino, mais ou menos, 250 mil pesos (em torno de R$ 1.460). Isso é mais que o valor do salário mínimo nacional.
Congelado desde setembro de 2023, o governo de Javier Milei fixou um aumento de 30% no salário mínimo entre fevereiro e março. Conforme o reajuste, o valor do mínimo em fevereiro ficou em 180 mil pesos (US$ 204 na taxa oficial de câmbio, ou R$ 1.007), o que representa um aumento de 15% em relação aos 156 mil pesos atuais.
Como o anúncio prevê dois reajustes, agora em março, o valor será de 202,8 mil pesos (US$ 230, ou R$ 1.136), um aumento de 30% em relação ao valor atual. Ainda assim, em comparação com o salário mínimo brasileiro, que está fixado em R$ 1.412 em 2024, o valor argentino é menor.
Retrato da Argentina
- Inflação anual: 254%
- Taxa de juros: 133%
- Câmbio: 800 pesos por dólar
- Nível de pobreza: 57%
Esse retrato não tem um único culpado e não é tem simples de explicar. O que levou a Argentina a esses indicadores começou nos anos 1990 e piorou com a participação direta dos últimos quatro presidentes argentinos. Segundo especialistas ouvidos pelo Terra, a falta de estabilidade política e fiscal, além da oscilação entre políticas de direita e de esquerda, contribuíram para o cenário social e econômico do país.
“A Argentina sofre desde início dos anos 90, portanto mais de 30 anos. Esse tempo todo deixou a economia da Argentina em frangalhos. Os argentinos não puderam, por uma série de fatores, inclusive por causa da dívida que sempre foi muito alta, fazer um plano de combate à inflação lá atrás e isso piorou muito a situação”, diz Paulo Feldmann, professor da FIA Business School.
“Avaliar a contribuição de cada governo para o atual momento vivido pela Argentina requer considerar diversos fatores econômicos, sociais e políticos. Cada período teve suas políticas com impactos distintos, contribuindo de formas diferentes para a situação atual da Argentina”, afirma Otto Nogami, economista e professor do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper).
Em um recorte dos últimos cinco presidentes argentinos, é possível dizer que os Kirchners focaram em políticas de crescimento e redistribuição, enfrentando críticas por manipulação de estatísticas e controles rígidos. Macri buscou reformas pró-mercado, mas enfrentou recessão, alta inflação e aumento da dívida. Fernández herdou esses desafios, enfrentando também a pandemia de Covid-19. Por fim, Milei pegou o país à beira do colapso.
Argentina dos últimos 20 anos
Governos Kirchner (Néstor Kirchner: 2003-2007 e Cristina Kirchner: 2007-2015)
Os Kirchners chegaram ao poder após a crise financeira de 2001, enfrentando uma enorme crise de legitimidade política. Eles conseguiram restaurar a fé na política institucional e estabelecer uma base política e social organizada, que incluiu uma coleção vibrante de organizações, a maioria jovem e agrupada principalmente dentro do Partido Peronista. Durante seus mandatos, houve um foco em políticas sociais e na revigoração do movimento sindical, além da organização de novos movimentos sociais focados nos trabalhadores da economia informal.
No governo de Néstor Kirchner, a Argentina viu uma recuperação econômica marcada por políticas que visavam reativar a economia e reduzir a pobreza após a crise de 2001. A inflação começou a crescer, mas era gerenciada dentro de um contexto de forte recuperação econômica. A taxa de juros foi utilizada como ferramenta para controlar a inflação e estimular o investimento. O câmbio foi mantido competitivo para favorecer as exportações. Essas políticas contribuíram para a redução significativa da pobreza e um período de crescimento econômico sustentado.
Durante o governo de Cristina Kirchner a Argentina enfrentou desafios econômicos, incluindo alta inflação, restrições cambiais e taxas de juros variáveis. A inflação esteve frequentemente em dois dígitos, embora os números oficiais tenham sido questionados por agências independentes. As políticas de controle de câmbio foram implementadas para estabilizar o peso argentino, mas geraram distorções no mercado. A pobreza flutuou, refletindo os desafios econômicos e as políticas sociais para mitigá-la.
Mauricio Macri (2015-2019)
Macri assumiu o cargo prometendo "normalizar" o país após 14 anos de governo Peronista. Ele se comprometeu a alcançar uma taxa de pobreza zero, domar a inflação, combater a corrupção e revitalizar a economia estagnada da Argentina. No entanto, durante seu mandato, o PIB encolheu 3,4%, a inflação totalizou 240%, e a pobreza aumentou.
A insatisfação crescente com a economia levou a uma eleição devastadora para Macri, que ficou 16 pontos atrás da chapa Peronista. Macri adotou uma abordagem de gradualismo, que inicialmente parecia possível devido ao baixo endividamento, mas os apoios políticos vacilaram uma vez que os riscos econômicos se materializaram. Sua administração se viu forçada a recorrer ao FMI, efetivamente revertendo a decisão dos Kirchners de cortar todos os laços com a organização em 2005.
Alberto Fernández (2019-2023)
Fernández assumiu a presidência com a promessa de construir uma Argentina mais igualitária. Seu governo enfrentou imediatamente desafios econômicos significativos, incluindo a necessidade de estabilizar e reviver a terceira maior economia da América Latina. As medidas incluíram restrições ao câmbio para preservar as reservas do país, que estavam se esgotando.
Fernández, considerado mais moderado que sua companheira de chapa, Cristina Fernández de Kirchner, falou em incentivar pequenas empresas, aumentar pensões para aposentados e renegociar o pacto de US$ 57 bilhões com o FMI para que fosse menos oneroso para os argentinos médios. A vitória de Fernández nas eleições foi um retorno ao poder do Peronismo, um movimento político que representa a classe trabalhadora.
Javier Milei (desde 2023)
O governo Milei começou em dezembro de 2023 e representa uma nova direção política para a Argentina, com promessas de implementar políticas econômicas liberais. Milei herdou um país em estado catastrófico, com alto endividamento e inflação. "Que fique claro: nenhum governo recebeu uma situação pior do que estamos recebendo”, chegou a dizer em seu discurso de posse.
Para Paulo Feldmann, professor da FIA Business School, mudar este cenário é muito difícil. “A Argentina precisa de um plano de longo prazo. E nesse ponto a Argentina é parecida com o Brasil”, comenta em conversa com o Terra.
Economista e professor do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), Otto Nogami considera que o governo argentino precisa adotar medidas que abordem tanto a instabilidade econômica quanto a política: “Essas medidas podem incluir políticas para estabilizar a moeda, implementar uma disciplina fiscal e orçamentária rigorosa, e estruturar reformas econômicas que promovam o crescimento sustentável”.
As lições com o caso da Argentina?
Os especialistas respondem que há várias lições a aprender. “A Argentina é uma escola para nós brasileiros. Nós temos muito a aprender com os erros deles, muitos dos erros nós também fizemos em menor grau. Por exemplo, essa questão do déficit fiscal, a Argentina nunca deu bola para isso, que hoje é uma das razões do problema do país. Então, talvez a lição mais importante seja essa: nenhum governo pode gastar mais do que o que arrecada“, pontua Feldmann.
Otto acrescenta que a situação econômica da Argentina oferece lições importantes para o Brasil, incluindo a necessidade de manter a responsabilidade fiscal, a importância de políticas econômicas consistentes e previsíveis, e o cuidado com medidas populistas que podem levar a desequilíbrios fiscais e inflação alta. Também ressalta a importância de manter reservas internacionais robustas e a estabilidade da moeda para proteger contrachoques externos e internos, além da necessidade de reformas estruturais para promover um crescimento econômico sustentável.