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Lenço umedecido e leite em pó: por que furtos com valores pequenos chegam ao STF?

Julgamento de crimes chamados famélicos envolve o conflito entre o direito à propriedade e o direito à integridade e à vida; entenda

12 dez 2023 - 05h00
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Foto: Reprodução/CNJ

Um homem de 28 anos, preso por furtar três pacotes de lenço umedecido e uma lata de leite em pó avaliados em R$ 62, teve um pedido de habeas corpus negado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em outubro deste ano.

Para especialista ouvido pelo Terra, trata-se de um furto famélico - ou seja, um furto de alimento motivado para suprir necessidades básicas, como a fome. Mas porque casos como esse, de danos mínimos ao patrimônio alheio, chegam até o STF?

Como casos de furtos famélicos são julgados?

Ao Terra, o procurador de Estado de Pernambuco, o mestre em Direito Penal e sócio da Urbano Vitalino Advogados Luiz Mário Guerra, explicou que o julgamento dos crimes famélicos envolve o conflito entre o direito à propriedade e o direito à integridade e à vida.

“Criminalizar aquele que furta para saciar a urgência da fome seria condenar à morte pela miséria. Seria agir com insensibilidade estatal e, em última instância, violar o direito à vida e à dignidade humana”, explica.

Mas, por outro lado, não criminalizar é deixar de proteger o direito fundamental à propriedade. Esse é o dilema.

“Há, basicamente, duas fundamentações alternativas para a absolvição no caso de um crime famélico: 

1ª) o reconhecimento do estado de necessidade (art. 23, I, do Código Penal), quando o agente pratica o fato criminoso para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, ou; 

2ª) a aplicação do Princípio da Insignificância, por meio do qual se reconhece a ocorrência formal de um delito, mas, por ter impacto insignificante, falta-lhe tipicidade material

Em ambas as situações, não há crime”, complementa Guerra.

O que é o princípio de insignificância?

Para ser aplicado o princípio de insignificância, como explica Guerra, é preciso que haja:

  1. Ofensividade mínima da conduta do agente; 
  2. Reduzido grau de reprovabilidade; 
  3. Inexpressividade da lesão jurídica causada 
  4. Ausência de periculosidade social.

Esse princípio de insignificância não está previsto de forma literal, como acrescentou o defensor público de São Paulo Glauco Mazetto, da Assessoria Criminal e Infracional, à reportagem. “Você não vai encontrar no nosso ordenamento jurídico uma previsão frasal dele. Porém, ele existe, sim, no nosso ordenamento. Por quê? Porque o nosso ordenamento não depende só da interpretação literal”.

Mazetto reforça que nem todo furto de alimento se caracteriza como um furto famélico. Pois, no caso do furto famélico, existe a saciedade de fome como motivação. E, quando se tratam de valores diminutos, a questão pode ser relacionada ao princípio de insignificância.

Mas por que, mesmo assim, esses casos chegam até o STF?

Com base na experiência de Mazetto, ele explica que casos de furto famélico começam, em grande maioria, com prisões em flagrante - normalmente realizadas pela polícia militar. A partir disso, são algumas etapas:

  • Delegacia

Essa pessoa, então, é conduzida à delegacia para prestar suas declarações, testemunhas são ouvidas e, depois, ela é interrogada. Diante dos fatos apresentados, o delegado verifica se houve delito, ou não. A partir disso, o delegado faz um relatório e encaminha ao Ministério Público, à Defensoria e ao Judiciário. 

O delegado não pode arquivar um inquérito, pois é seu dever encaminhar o caso ao Ministério Público. Mas, verificando que não constitui crime, pode relaxar a prisão em flagrante, por exemplo.

Caso a pessoa seja mantida presa, a mesma é encaminhada para audiência de custódia. Em São Paulo, como cita, costuma ser feita dentro do prazo de 24 horas após a prisão. Nessa audiência é averiguado se a pessoa sofreu algum tipo de violência durante a prisão, por quem quer que seja. Nessa etapa também é reforçado se a pessoa deve ser mantida presa ou pode ser solta e também se é o caso dessa persecução penal continuar. 

  • Ministério Público

Supondo que o juiz entenda que o processo deva continuar, os autos são encaminhados ao Ministério Público e o órgão avalia se é caso de acusar formalmente essa pessoa ou não. Se for caso de arquivamento, passará por uma avaliação - que pode passar pelo Judiciário e por revisão de um órgão competente do MP.

Já se foi entendido que é um caso de denúncia, será formalizado o porquê de a pessoa estar sendo acusada. 

  • Judiciário

Esses documentos são encaminhados ao Judiciário, que avalia se receberá ou não o caso - averiguando se, realmente, se trata de um crime e, também, se há informações suficientes no inquérito.

No caso do furto famélico, esta é mais uma chance de indicar o princípio de insignificância e declarar não ser um caso de crime, ‘encerrando’ o processo. 

Mas se for o caso do Judiciário seguir, a pessoa será comunicada da acusação e da existência do processo. A partir dessa primeira ‘citação’, há um prazo para que a pessoa se defenda - seja com o auxílio de um advogado ou por meio da Defensoria Pública, caso não tenha condições financeiras. É uma defesa inicial.

A partir disso, o juiz pode marcar uma audiência para ouvir as testemunhas indicadas pelas partes e interrogar a pessoa que está sendo acusada, agora ré. O juiz, então, fará suas ponderações finais e dará sua sentença - que pode ser de considerar que a pessoa não cometeu crime o u, então, a direcionar ao cumprimento de alguma pena. Mais uma vez, nessa etapa, a pessoa acusada por furto famélico poderia ser ‘liberta’.

  • Tribunal de Justiça 

Dependendo da sentença recebida, a pessoa acusada, nesse momento, pode questionar a decisão. Então o recurso leva o caso à instância superior, o Tribunal de Justiça. Com a manifestação da Procuradoria-Geral de Justiça, que faz parte do Ministério Público, O TJ irá avaliar o recurso e dar uma outra decisão.

Essa decisão é feita a partir da análise de desembargadores que avaliam e julgam o recurso. Eles podem confirmar a decisão ou modificá-la - ‘piorando’ ou ‘melhorando’. Aqui também pode ser dada a absolvição.

Mas nessa etapa, se as partes não concordarem com a decisão, também é possível aplicar diversos recursos. Um deles é o habeas corpus, que muitas vezes é utilizado especialmente quando a pessoa está presa.

  • Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal

O habeas corpus irá questionar a manutenção dessa decisão, condenatória, perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Caso o STJ mantenha a decisão, é possível questioná-la pelo mesmo recurso no STF. 

“Tem todo esse caminho processual e o princípio de insignificância poderia ser dado em qualquer parte dele”, ressalta Mazetto, da Defensoria Pública de SP. 

O que faz o princípio de insignificância não ser aplicado?

A reincidência é um dos motivos. No caso citado no início da matéria, por exemplo, a decisão foi pautada na reincidência. Para os especialistas ouvidos pelo Terra, esse caminho não é o mais justo.

“Se a premissa avaliativa é a lesão causada a um determinado bem, qual a relação de eu saber se a pessoa é alta ou é baixa? Saber se a pessoa é rico ou é pobre? Saber se a pessoa cometeu crimes anteriormente ou não? Não tem nenhuma relação. Se eu peguei uma coisa sua e essa coisa sua foi restituída a você, por exemplo, sem nenhum dano, você conseguiu usufruir dessa coisa. Para você, tem algum peso aquela pessoa ter um passado criminoso ou não? É irrelevante”, pontua  Mazetto

Por que é incoerente esperar que o caso chegue ao STF?

Para Guerra, não é coerente que a denúncia seja aceita em diversas etapas para, após anos de tramitação processual, o judiciário declare que aquele fato pelo qual o réu foi processado constitui um não-delito.

“É como alguém fazer uma longa caminhada para, ao fim, descobrir que não precisava ter caminhado. O processo penal é custoso para o Estado e doloroso para o acusado. Se não há crime, é importante que se reconheça logo”.

Fonte: Redação Terra
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