Como viajar pelo mundo e trabalhar de forma online
As dicas de quatro profissionais que adotaram um novo estilo de vida como forma de autoconhecimento e liberdade
Uma família de três pessoas - esperando um bebê -, uma mulher de mais de 60 anos, um jovem e seu animal de estimação e uma jovem publicitária. Em comum, esses profissionais decidiram adotar um estilo de vida diferente, em que podem trabalhar de qualquer lugar do mundo. São os chamados nômades digitais.
Este modelo de trabalho, com maior flexibilização, conhecido como nomadismo digital, permite que as pessoas possam trabalhar de forma remota, com a utilização da tecnologia e da internet, enquanto viajam. No mundo, cerca de 35 milhões de pessoas adotam esse modelo, de acordo com Relatório Global de Tendências Migratórias 2022 da Fragomen. Até 2035, a estimativa é que 1 bilhão de pessoas vão adotar este estilo de vida.
O fenômeno foi potencializado pela modalidade do trabalho remoto e "veio para ficar", afirma Edna Rodrigues Bedani, professora de Liderança, Planejamento Pessoal e Autodesenvolvimento na ESPM. "O profissional realiza suas atividades independente da localização e tem responsabilidade pelos resultados e gestão de seus horários", destaca.
A jovem publicitária Sophia Costa, de 27 anos, pratica o nomadismo há algum tempo. Em 2016, ao terminar a graduação na área de Comunicação Social, recebeu o convite para expor seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em Berlim, na Alemanha. Por meio de uma vaquinha online, feita por colegas e familiares, Sophia conseguiu o dinheiro para fazer o passaporte e comprar as passagens para a sua primeira viagem internacional. "Eu descobri a minha melhor versão ali naqueles dias viajando. Fui para a Alemanha e para a Espanha, e me virei muito bem."
Ela não parou por aí. Empregada em um agência de publicidade no Brasil, viajou para outros países e, em 2018, traçou um novo destino: um mês de voluntariado em Moçambique. Nessa viagem, conseguiu um trabalho remoto na área de Business Intelligence e continuou viajando pela África por dois meses. Para a jovem, este foi o momento em que ela percebeu que queria trabalhar enquanto viajava e logo foi fazer um mestrado na Argentina.
Em 2020, passou o primeiro ano da pandemia na Tailândia, mostrando o contexto da crise sanitária na região e também o cotidiano como nômade digital. Quando chegou ao país asiático tinha 4 mil seguidores. Hoje são cerca de 56 mil. Atualmente ela trabalha com a produção de conteúdos e cursos em suas redes sociais. "É uma rotina normal, todo dia eu vou ter de trabalhar."
Na estrada com a família
É o que conta também Clara Magalhães, de 25 anos, que ensina 340 alunos por celular todos os dias. Natural de Goiânia, ela decidiu começar a viajar com seu marido, Bruno Alves, de 42 anos, e seu filho, Bernardo Magalhães, de 7 anos, em 2019.
Com uma barraca automotiva em uma caminhonete, venderam o apartamento e partiram do litoral do nordeste brasileiro para a cidade mais ao sul do mundo, Ushuaia, na Argentina. Depois de muita chuva, frio e da vontade de desistir, a família chegou à região e foi recebida com neve.
"Para o Bê, foi a melhor viagem da vida dele. Não importa o quão difícil seja o caminho, a gente consegue", diz Clara, que percebeu naquele momento que viajar e trabalhar era o estilo de vida que queria.
Com uma criança pequena, no entanto, era preciso planejamento financeiro e educacional. O casal calculou uma média mensal de gastos (camping, combustível e mercado) e uma reserva de emergência.
Sobre a escola de Bernardo, Clara, assumiu a educação do filho no primeiro ano. Além das matérias tradicionais, levou o filho para museus de ciências, de artes e projetos ambientais no Brasil. Durante os dois primeiros anos da pandemia, o casal resolveu se isolar e esperar para voltar às viagens. Agora, com o filho matriculado em uma escola americana que permite o homeschooling, estão viajando em um motorhome - uma casa sobre rodas - para o Uruguai, Argentina e Paraguai, para voltarem ao Brasil em outubro, quando Cauê for nascer - Clara está grávida de cinco meses.
Companhia canina
O planejamento detalhista também faz parte das viagens de Giordano Migliorini Estevão, de 25 anos. O jovem desenvolvedor, que nasceu em Brasília, não viaja sozinho: ele vai acompanhado de Celina, uma cachorra da raça Samoieda, de porte médio de apenas um ano de idade. Portanto, além das despesas pessoais, as planilhas de Estevão também incluem os gastos de Celina, o que deixa o orçamento mais caro.
Ele explica ainda que tem uma mala para a Celina, com brinquedos para distraí-la, atestado de saúde - renovado a cada duas semanas com a ida ao veterinário - vonau, escova e cinto coleira especial para o carro. Além disso, há sempre alguns cuidados que precisa tomar, como avisar o local onde vai se hospedar sobre o porte do animal.
Estevão trabalha das 8 às 17 horas ou das 9 às 18 horas durante a semana. As viagens são feitas aos sábados, com paradas de 3 em 3 horas. O roteiro atual inclui passagem por Buenos Aires e tem como destino final o Estado do Maranhão, no Norte do Brasil. "Planejo a cidade, mas gosto de ir vivendo, conhecer as pessoas na hora, ver o que elas gostam", destaca o jovem, que também busca autoconhecimento nessas viagens.
"Se conhecer é importante nesse processo. É preciso sair da zona de conforto e saber lidar com situações imprevisíveis. Isso exige uma energia mental grande para dar a resposta adequada. É uma rápida adaptação e flexibilidade", destaca Vanessa Cepellos, professora de Gestão de Pessoas da FGV-EAESP.
Nunca é tarde demais
Para a professora de Educação Física, Marisa Porto, a busca pela liberdade motivou o nomadismo digital. Foi aos 60 anos que ela viu a oportunidade de conhecer novos lugares dando aula online de feng shui terapêutico. Durante algum tempo fez isso morando no Rio de Janeiro, mas começou a ter muitos convites de alunas do Pais inteiro para visitar suas cidades.
Em 2017, desenvolveu um roteiro em cidades onde tinha alunas e clientes, agendou aulas e cursos e durante sete meses viajou pelo Brasil. "Minha temporada de 2017 foi barata, me hospedei somente duas noites em hotéis, trocando o pagamento da estadia pela realização de palestras. Todas as outras noites desses sete meses dormi na casa de clientes e familiares", destaca Marisa, que diz gastar menos viajando do que quando está em sua casa.
Em 2018 e 2019, ao aumentar sua rede de alunas e clientes, viajou pelo Brasil e também pela Europa. Marisa afirma que ter uma rede de segurança e não viajar para locais onde não conhece são pontos importantes do seu planejamento.
"Sempre tento facilitar minha vida. Talvez essa seja uma característica da idade. Vou para países que já conheço. Seria bem mais complicado ir para um país que eu não falo a língua e que não tem ninguém que eu conheça. Não quero ter mais problemas", enfatiza.
Visando a sua segurança, durante os primeiros dois anos de pandemia, Marisa ficou em casa e resolveu esperar. Hoje, em 2022, afirma que faz apenas viagens em regiões próximas a sua casa. "Eu me apaixonei por viajar sozinha, a minha companhia para viagem é excelente, não me distraio conversando com ninguém, faço tudo o que eu quero e do jeito que eu quero. Meu objetivo com o nomadismo é mostrar para as pessoas que quando a gente fica mais velho dá começar uma nova vida. A minha proposta é a liberdade."
Exclusão digital
A professora Edna Rodrigues Bedani, da ESPM, destaca, entretanto, que o nomadismo é formado, em sua maioria, por profissionais de classe média no Brasil. De acordo com o relatório "O trabalho remoto potencial e efetivo no Brasil: possíveis razões de um hiato elevado", do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), cerca de um quinto dos funcionários em trabalhos que podem ser feitos de forma remota não têm o mínimo para estarem de home office: não têm computador com acesso à internet ou mesmo energia elétrica em suas casas.
"Existe uma exclusão digital muito grande no País. As pessoas não têm acesso ao computador, não tem habilidade para mexer nas ferramentas nem internet", complementa Vanessa Cepellos, professora de Gestão de Pessoas da FGV-EAESP. A professora ainda explica que não é só a falta de acesso ao teletrabalho, mas também a dificuldade financeira, tendo como um dos primeiros desafios a compra da passagem de avião.