Novo governo precisa descer do palanque e encarar realidade fiscal; leia o artigo
É preciso ser sincero com a sociedade: as promessas eleitorais não poderão ser cumpridas já no primeiro ano de mandato, e algumas terão de ser reformulada
O governo eleito herdará um orçamento federal com muitos problemas. Primeiro, porque uma mudança casuística feita em 2021 na regra do teto, para aproveitar o aumento da inflação e expandir o limite de gastos, agora está atuando em direção contrária: a inflação está caindo, o que aperta o teto em R$ 27 bilhões. Segundo, porque foram feitas muitas promessas eleitorais que não cabem no orçamento. Terceiro, porque o Congresso se apropriou de mais de 30% das despesas discricionárias, com emendas de relator e a execução obrigatória das demais emendas parlamentares.
Mesmo omitindo despesas, o orçamento apresentado ao Congresso pelo governo Bolsonaro tem um déficit de R$ 60 bilhões. Uma mudança constitucional que aumente o teto para viabilizar todas as promessas eleitorais jogaria esse déficit para perto de R$ 400 bilhões. O maior peso é o da correção da tabela de Imposto de Renda para isentar quem recebe até R$ 5 mil (pelo menos R$ 120 bilhões).
Não seria exagero classificar esse cenário como "desastre fiscal". A dívida pública pularia de 77% do PIB para 84% em apenas um ano, e assumiria uma trajetória de crescimento difícil de reverter, dado que o aumento do déficit viria de despesas obrigatórias permanentes e da perda definitiva de receitas.
O novo governo precisa descer do palanque e ser sincero com a sociedade: as promessas eleitorais não poderão ser cumpridas já no primeiro ano de mandato, e algumas terão de ser reformuladas.
A correção da tabela do IR, por exemplo, deveria ser feita no âmbito de reforma da tributação da renda, em que outras medidas compensem a perda de receita. E não poderá ser tão radical. Por outro lado, a atual desoneração fiscal da gasolina (R$ 34 bilhões) precisa ser repensada.
O custo do Auxílio Brasil pulou de R$ 32 bilhões para R$ 106 bilhões em dois anos. Cogita-se agora a expansão para R$ 160 bilhões. Ainda que estejamos vivendo uma situação atípica, com a miséria criada em decorrência da covid-19, não é trivial dizer que precisamos de mais dinheiro neste programa. Está claro que o programa tem falhas graves de desenho. Entre elas, a distribuição do benefício mínimo de R$ 600 por unidade familiar sem considerar quantas pessoas há na família. Isso desencadeou uma onda de registro de famílias de uma só pessoa, para que cada pessoa da família receba os R$ 600. Em novembro de 2021, havia 2,1 milhões de famílias beneficiárias do Auxílio compostas por apenas uma pessoa. Em agosto de 2022 já eram 5,2 milhões nessa condição. Este tipo de disfuncionalidade aumentaria o gasto em aproximadamente R$ 10 bilhões.
Antes de aumentar a despesa, é preciso redesenhar o programa. Isso pode ser feito rapidamente, apresentando-se um projeto de lei que seria aprovado com menos dificuldade que uma PEC de aumento do teto.
Prioridades
Reajustes no salário mínimo e na remuneração dos servidores devem ser discutidos ao longo do mandato, e não no primeiro dia de governo. Diversos benefícios dados a grupos específicos devem ser revistos e submetidos a regras de prioridade. Se temos um quadro de miséria generalizada que exige forte expansão do Auxílio Brasil e outras políticas correlatas - como o Farmácia Popular -, outras despesas precisam ser sacrificadas em função do financiamento daquela que é a emergência nacional. Por exemplo, a adoção de políticas de renegociação de dívidas de pessoas físicas com dinheiro público precisa ser estudada, a fim de assegurar a elaboração de política pública de qualidade, que evite distorções.
O futuro governo precisa dialogar com o Congresso ainda na atual legislatura sobre a real situação fiscal para deixar clara a inviabilidade de manter a alocação de R$ 19,4 bilhões em emendas de relator e outros R$ 19,4 bilhões em emendas individuais e de bancada. A compreensão dessa limitação prestará importante contribuição para possibilitar o gasto adicional do Auxílio Brasil e demais políticas prioritárias.
Partilhar com o Congresso a responsabilidade das futuras políticas sociais necessárias parece ser a melhor estratégia, afinal, trata-se do momento em que o futuro governo dispõe de apoio e condições de promover pontos estratégicos da agenda.
Neste sentido, o ideal seria negociar um valor fixo e conservador de aumento do teto, a ser alocado entre diferentes despesas. Do ponto de vista de qualidade de políticas públicas, isso seria melhor do que definir, por antecipação, a retirada de despesas do teto. Isto pode evitar que se abra uma porta para aumentos sem limites das despesas e distorcer prioridades, pois, enquanto umas despesas ficam limitadas, outras podem subir à vontade.
O governo eleito pode até contar com a sorte, caso os preços das commodities continuem altos no ano que vem. Assim, a arrecadação se manterá elevada e o déficit não crescerá tanto. Mas dificilmente isso se manterá durante todo o mandato. E aí uma nova crise, como a de 2014, pode se abater sobre o País.
Marcos Mendes é economista e pesquisador associado do Insper.
Paulo Hartung é economista, ex-governador do Espírito Santo e presidente executivo da Indústria Brasileira de Árvores (ibá)