O que acontece com as finanças de uma mulher diagnosticada com câncer de mama?
Principal causa de morte por oncologia em mulheres, doença costuma comprometer também a estabilidade financeira, o trabalho e a recolocação
“Quem espera ter câncer de mama aos 37 anos?” Era maio de 2014 quando Joelma Medeiros, professora da rede pública, resolveu fazer um autoexame de toque nas mamas depois de alguns casos na família. “Lembro até hoje da sensação de medo quando senti o nódulo.” Não demorou muito para que o diagnóstico se confirmasse: tumor maligno nos seios em estágio 3, próximo a metástase.
Por ser funcionária pública, a docente conseguiu licença remunerada para poder se afastar do trabalho e iniciar o tratamento. Apesar de ter todo o tratamento oncológico (quimioterapia e radioterapia) custeado pela Liga Norte Riograndense Contra o Câncer como paciente do SUS, as despesas de exames mais urgentes ficaram por conta das finanças pessoais. “Tive de abandonar rapidamente minhas atividades para me dedicar exclusivamente ao processo de cura. Não estava preparada financeiramente, então isso me gerou dívidas.”
Para Carla Beni, professora de finanças da FGV, existe uma dificuldade sistêmica para mulheres quando o assunto é programar uma reserva de emergência que as ajude a lidar com situações do tipo. “Mesmo depois de tantos anos, mulheres não são ensinadas a pensar nas próprias finanças. Essa responsabilidade é sempre socialmente delegada a um homem: o pai, nas primeiras fases da vida, e depois o marido. Na hierarquia da família, os dependentes também sempre vêm primeiro: os filhos, os cônjuges, os pais idosos.”
Além das questões de saúde, mulheres em situação de adoecimento por câncer costumam enfrentar uma série de desafios trabalhistas. De acordo com dados de uma pesquisa conduzida em 2019 pela Opinion Box em parceria com a Fundação Laço Rosa e o Linkedin Brasil, além do afastamento pelo INSS (36%), 23% das mulheres também abandonam seus empregos por não se sentirem bem o suficiente para trabalhar e não conseguirem conciliar o tratamento com o trabalho (10%).
Depois do tratamento, a superação do câncer também não significa que a vida voltará ao normal: 47% das pacientes que se curaram da doença ainda estão fora do mercado de trabalho.
Perfil oncológico e demográfico no Brasil
De acordo do INCA (Instituto Nacional de Câncer), os registros hospitalares indicam que a média de idade ao diagnóstico é de 55 anos, sendo 51% de mulheres brancas e 40% diagnosticadas em estágios avançados. A maior taxa de incidência se concentra nas regiões Sul e Sudeste, explicado pelo maior desenvolvimento socioeconômico e consequente exposição aos fatores de risco (obesidade, sedentarismo, filhos em idade mais avançada, menor amamentação) e pelo perfil mais envelhecido da população nessas regiões.
Estimativas para o triênio 2023-2025, obtidas com exclusividade pelo Estadão junto ao órgão, apontam um total de 73.610 novas incidências de câncer de mama no Brasil. Na Região Norte, o Estado do Pará apresenta a maior estimativa com 1.020 casos, sendo 380 na capital Belém. Amazonas segue com 500 casos projetados, dos quais 420 são na capital Manaus. O Nordeste, por sua vez, tem na Bahia o maior número de ocorrências estimadas, com 4.230, sendo 1.340 na capital Salvador. Ceará e Pernambuco também apresentam números expressivos com 3.080 e 2.880 casos respectivamente, e suas capitais, Fortaleza e Recife, com 1.220 e 930 registros projetados.
O Centro-Oeste mostra uma concentração de casos no Distrito Federal e em Goiás, com 1.030 e 1.970 casos respectivamente. A capital Goiânia apresenta uma estimativa de 630 casos. No Sudeste, o Estado do Rio de Janeiro e São Paulo destacam-se com as maiores estimativas, sendo 10.290 e 20.470 casos respectivamente. As capitais seguem a mesma tendência, com Rio de Janeiro com 4.850 casos e São Paulo com 6.640 casos. Por fim, a Região Sul revela uma distribuição mais uniforme entre os Estados, com Santa Catarina liderando com 3.860 casos. Paraná e Rio Grande do Sul seguem com 3.650 e 3.720 casos respectivamente.
Segundo o INCA, ao todo, são 316 hospitais habilitados no SUS para o tratamento integral ao paciente com câncer, oferecendo assistência geral, especializada e integral.
O estigma e o mercado de trabalho
Quem contrata ou mantém trabalhando mulheres em situação de câncer de mama? Conversamos com Marcelle Medeiros, presidente da Fundação Laço Rosa, que luta em prol do empoderamento econômico de mulheres em situação de câncer por meio do empreendedorismo, para entender como o processo de dispensa discriminatória e estigma afeta essas mulheres .
“A dispensa discriminatória, ou seja, a demissão sem uma justificativa razoável, é um processo que acontece muito com mulheres com câncer de mama. Muitas delas, depois de passarem pelo afastamento para o tratamento, que é garantido por lei, são demitidas na volta porque os empregadores passam a enxergá-las como incapazes”.
No caso descrito, os tribunais exigem provas de que a empresa estava ciente da condição de saúde do trabalhador no momento da demissão. Portanto, é importante informar a empresa sobre a condição de saúde, obtendo segurança em relação aos seus direitos. Atestados médicos, documentos do INSS (em caso de afastamento e recebimento de auxílio-doença) ou outros registros que demonstrem que o empregador tinha conhecimento do estado de saúde do funcionário na demissão podem ser usados como prova.
Para a psicóloga e especialista em saúde mental Beatriz Lima, o estigma demonstra um despreparo do mundo do trabalho em lidar com as questões de saúde dos colaboradores – o que pode agravar o quadro do ponto de vista da saúde mental.
“Toda a representação social da doença ainda é marcada por sentimentos como medo e insegurança em relação à possibilidade de morte, tanto do lado da paciente quanto na ótica de quem enxerga a situação de fora. O mercado de trabalho parece não ter capacidade de discutir adoecimento feminino para além do outubro rosa. É importante salientar também que, junto a todos os fatores emocionais e estruturais, a ideia da privação financeira decorrente de um desligamento de trabalho também pode afetar a saúde mental da mulher desde o início dos sintomas de um possível câncer”, explica Beatriz.
Começando uma reserva financeira – e conhecendo os seus direitos
Existe um passo básico na organização das finanças frente a um quadro de doença grave: conhecer os próprios direitos. O primeiro deles é a possibilidade de solicitar a quitação de financiamento da casa própria, especialmente quando o financiamento é feito pelo sistema financeiro de habitação, que inclui um seguro embutido para garantir a quitação do imóvel em caso de invalidez.
Além disso, se a paciente estiver considerando comprar um veículo e tiver condições financeiras específicas, pode se beneficiar da isenção de IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) e até mesmo da isenção de IPVA (Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores), dependendo das regras de cada Estado, além do direito a descontos de até 50% nas passagens interestaduais.
Para as pessoas em afastamento pelo INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), a isenção de imposto de renda e a solicitação de aposentadoria também podem ser possibilidades a serem exploradas, conforme ressalta Carla Beni: “O Estado oferece uma série de benefícios que muitas pessoas desconhecem, embora possam exigir esforço para acessá-los. Ter familiares e amigos informados sobre essas alternativas pode formar uma rede de apoio valiosa para facilitar o processo de recuperação de pacientes em tratamento”.
No que diz respeito à construção de uma reserva de emergência, a dica de Beni é pensar a longo prazo, já que, ao longo dos anos, nossa capacidade de trabalho diminui com a idade, e após a aposentadoria, ainda temos um terço da vida pela frente. “Uma regra básica, porém complexa, é a divisão de gastos, onde idealmente se deve gastar 70% da renda e economizar os outros 30%. Isso pode variar ao longo da vida, mas é fundamental manter um excedente financeiro mensal para enfrentar situações imprevistas, como necessidades momentâneas, perda de emprego ou despesas inesperadas.”
Quase uma década depois de encerrar o tratamento, Joelma Medeiros celebra a possibilidade de vida e trabalho após a cura. “Passei por um campo de batalha e sou uma sobrevivente. Hoje, exerço minha profissão novamente e me sinto privilegiada pela vida que tenho.”
* Trainee sob supervisão de Karen Lemos