Piloto de avião, a profissão para a qual não há crise
Serão necessários cerca de 620 mil novos profissionais para pilotar aviões comerciais nos próximos 15 a 20 anos, de acordo com a Organização da Aviação Civil Internacional.
Durante os incêndios catastróficos que devastaram o estado americano da Califórnia em agosto deste ano, a principal agência responsável pelo combate às chamas (Cal Fire) enfrentou um obstáculo extra.
Pelo menos 20% da sua frota de tankers - aviões usados como extintores de incêndio - não decolou.
E não foi por conta de problemas técnicos. Mas, sim, pela simples falta de profissionais para pilotá-los.
Em maio, a imprensa publicou que a Emirates, uma das maiores companhias aéreas comerciais do mundo, planejava deixar algumas aeronaves fora de serviço temporariamente por motivos que incluíam "problemas na escala de pilotos".
Ao longo dos últimos meses, a Ryanair, uma das maiores empresas aéreas de baixo custo da Europa, enfrentou greves de pilotos que levaram ao cancelamento de milhares de voos.
A empresa atribuiu a greve a "erros de cronograma", mas a imprensa europeia publicou declarações de funcionários sobre uma "hemorragia" de pilotos para outras companhias.
Aeroportos lotados
Serão necessários cerca de 620 mil novos profissionais para pilotar aviões comerciais nos próximos 15 a 20 anos, de acordo com a Organização da Aviação Civil Internacional (ICAO, na sigla em inglês), agência especializada da ONU.
Em outras palavras, estamos voando mais do que nunca.
Segundo dados do Banco Mundial, cerca de 311 milhões de pessoas viajaram de avião em 1970.
Passados 40 anos, em 2010, a marca de 2,6 bilhões foi ultrapassada.
Em 2017, o número de passageiros subiu para 4,1 bilhões, de acordo com a Associação Internacional de Transporte Aéreo (IATA, em inglês).
A estimativa é que até 2036 chegue a 7,8 bilhões.
"Esse é um caso clássico de baixa oferta e alta demanda", explicou o ex-piloto comercial Peter Gall.
"O desequilíbrio criou uma 'tempestade perfeita', e essa escassez vai ficar ainda pior", escreveu o professor assistente de engenharia mecânica e aeroespacial da Universidade de West Virginia, nos EUA, em artigo publicado em julho pelo site de notícias acadêmicas The Conversation.
Esse crescimento na demanda por viagens aéreas foi impulsionado principalmente pela região da Ásia-Pacífico.
Apenas na China, 549 milhões de pessoas cruzaram os céus em 2017, segundo a ICAO - o dobro do registrado cinco anos antes.
A última edição de um relatório anual publicado pela fabricante americana de aeronaves Boeing estima que a região precisará de 260 mil pilotos extras até 2037.
Outro problema é que a atual geração de pilotos está ficando cada vez mais velha.
Um estudo realizado pela CAE, fabricante de simuladores de voo, mostrou que, em 2016, a proporção de profissionais com mais de 50 anos correspondia a quase metade do efetivo disponível - a idade obrigatória para aposentadoria de pilotos geralmente varia entre 60 e 65 anos em todo o mundo.
Vários países decidiram alterar, no entanto, o limite de idade como forma de atrasar a aposentadoria de pilotos experientes.
O Japão, por exemplo, aumentou para 67 anos em 2015.
Mas a principal tática usada pelas companhias aéreas para lidar com a falta de mão de obra é o tradicional "roubo" de talentos da concorrência.
No ano passado, a Administração Chinesa de Aviação Civil contabilizou 1.332 pilotos estrangeiros de 56 nacionalidades em suas companhias aéreas - quase 10% do total de profissionais no mundo.
Entre outros fatores, eles foram atraídos principalmente pelos contratos generosos, com salário anual líquido que pode chegar a até US$ 500 mil.
Os países de origem dos pilotos, por sua vez, têm dificuldade para substituí-los.
A força do "dreno" chinês pode ser sentido principalmente em regiões com contingente mais restrito desses profissionais, como a África - ainda que, para algumas companhias aéreas da região, o interesse estrangeiro seja uma bênção.
A South African Airways, que vem enfrentando uma turbulência financeira, passou a emprestar pilotos e profissionais de tripulação para empresas do Oriente Médio como parte de uma estratégia para reduzir custos e evitar corte de pessoal.
"Estamos preocupados com a sobrevivência da companhia aérea, e nosso principal objetivo é proteger os funcionários da SAA e retomar o desempenho financeiro positivo", disse um porta-voz da companhia em junho.
Uma carreira em baixa?
Mas por que é tão difícil formar pilotos?
Um dos principais obstáculos é o custo.
Os aspirantes têm que financiar muitas vezes do próprio bolso todo treinamento e aperfeiçoamento, uma conta que pode chegar facilmente a US$ 200 mil até que os candidatos acumulem as horas de voo necessárias para pilotar aeronaves maiores.
Além disso, os generosos salários oferecidos pela China aos expatriados não são uma regra da indústria.
Nos EUA, especialistas dizem que o salário inicial de um piloto pode ser de apenas US$ 15 mil por ano, abaixo da média salarial nacional.
"As três principais razões para a falta de qualificação dos pilotos são o custo do treinamento, os tipos de requisitos para classificação e suas respectivas taxas, os salários e condições", diz Patrick Smith, piloto de aviação e especialista em aviação, responsável pelo site askthepilot.com.
Especialistas avaliam que o desafio de aumentar o interesse de potenciais candidatos na carreira de piloto é uma oportunidade, por exemplo, para tratar do desequilíbrio de gênero na profissão.
A Air Line Pilots Association International, o maior sindicato do setor de aviação, estima que pouco mais de 5% dos pilotos em todo o mundo sejam mulheres - a Índia é um caso isolado, com uma taxa de 13%, mais do que o dobro do percentual da Inglaterra (4,8%) .
"Não há modelos inspiradores o suficiente. Também não ajuda o fato de a profissão ter perdido o apelo e de que poucas companhias aéreas estejam buscando escalas e políticas favoráveis às famílias", diz Tanja Harter, da European Cockpit Association (ECA).
"Mas, em geral, é mais uma questão social. A opção de escolher a profissão de piloto como carreira precisa se tornar visível para as meninas desde cedo", acrescenta Harter, que tem mais de 15 anos de experiência pilotando jatos comerciais.
Há também pedidos para que as companhias aéreas aumentem os subsídios para a formação de novos pilotos e ampliem seus programas de treinamento.
Essa é uma solução, no entanto, que pode pressionar os orçamentos das companhias aéreas.
Os negócios, de maneira geral, estão indo bem para as companhias aéreas - os números da IATA mostram que, em 2017, os lucros das maiores empresas do mundo atingiram recorde de US$ 38 bilhões.
Custos de mão de obra mais elevados, no entanto, foram apontados como uma das razões dadas para a organização ter anunciado recentemente um corte de 12% na previsão de lucros do setor em 2018.
Escassez questionada
Mas nem todos estão convencidos de que uma crise de escassez se aproxima.
Em um relatório publicado em março, a ECA questionou as estatísticas de déficit e afirmou que os dados das associações de pilotos nacionais indicavam uma taxa média de desemprego de 15% entre os pilotos na Europa.
"Não estamos interessados em chamar a atenção para esta demanda por pilotos. Algumas agendas de partes interessadas parecem enfraquecer a regulamentação de segurança para 'liberar' o fornecimento de pilotos para algumas companhias aéreas a um custo menor e/ou aumentar os lucros de algumas organizações de treinamento", argumenta Tanja Harter.
A ICAO afirma, no entanto, que há uma necessidade de "investimento significativo em desenvolvimento de recursos humanos para garantir que tenhamos pilotos, controladores e outros profissionais necessários para manter nosso setor funcionando como o mundo espera".
"Cerca de 80% dos pilotos que a frota global precisará até 2036 não estão voando hoje. Estamos conscientes da importância crucial da conexão aérea como um catalisador para o desenvolvimento socioeconômico".
"Em muitas regiões do mundo, esse crescimento potencial representa uma oportunidade de tirar uma geração da pobreza - literalmente e figurativamente", explica o porta-voz da ICAO, William Raillant-Clark.
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