Rede Mulher Empreendedora: A mulher como alavanca da sociedade
Com mais de dez milhões de pessoas impactadas direta e indiretamente, a RME já repassou mais de R$ 40 milhões em investimentos
Caso seguisse sua verdadeira vontade, Célia Kano teria prestado vestibular para artes plásticas. Se fosse para forçar um encaixe daquilo que gostava ao que era considerado uma profissão de maiores promessas, o caminho seria arquitetura. Mas a graduação que assinalou ao se inscrever para o vestibular da Universidade de São Paulo foi a improvável engenharia mecatrônica. A decisão mais sensata, julgou, seria vestir botas e óculos de proteção e seguir o caminho de seu pai.
Não precisa muito tempo de conversa para saber que Célia tomou, sem reservas, a lição sobre o que é ser uma boa filha. "Escolhi engenharia para agradar os meus pais", admite a descendente de japoneses de quarta geração no Brasil. Decisão tomada, arrancou Célia em uma jornada corporativa, que durou pouco menos de dez anos. "Eu estava me sentindo um pouco desconectada de trabalhar para grandes empresas. Abri o Google e pesquisei iniciativas de impacto social. A gente usa o Google de coach, né?", observou em episódio mais recente do podcast Vale do Suplício.
Esse "coach" que supre nossas dúvidas não poderia ter sido mais certeiro na opção que apresentou a ela: o trabalho do banqueiro Muhammad Yunus, laureado Nobel da Paz em 2006 pela sua trajetória que, entre outras passagens, foi marcada pela criação do Grameen Bank, o banco dos pobres, em Bangladesh. Célia pediu demissão, fez as malas e rumou a Daka para uma imersão de dois meses na organização. Imersão, esta, que interrompeu a linear e insípida trajetória corporativa.
Esses 60 dias de mergulho em uma cultura na qual os conceitos de pobreza, opressão e machismo são completamente ressignificados foram catalisadores de uma transformação profunda. O Greeman Bank fornece microcrédito somente para mulheres e, a depender da linha, é preciso que a casa da família esteja no nome da tomadora - algo que era impensável para a cultura local. A consequência foi a redução do desequilíbrio da balança do poder social, na qual o maior peso, como não demanda muito esforço imaginar, estava com o homem.
"A tese de investimento dele [Yunus] é a mulher como alavanca social. A mulher é aquela que vai investir na educação dos filhos. Vai tomar a decisão no mercado sobre o que comprar. Mas a gente ficou segregada. Na sociedade e no mundo dos negócios."
Sobre regenerar-se
"O que persiste é sempre o que se regenera", disse o filósofo e poeta francês Gaston Bachelard. E se Célia Kano é hoje coCEO da Rede Mulher Empreendedora (RME), organização social que já impactou mais de dez milhões de pessoas direta e indiretamente e movimentou R$ 40 milhões em aportes para empreendedoras, é porque ela se regenerou. O convite para partilhar a gestão da RME veio pouco tempo depois que Célia voltou ao Brasil e partiu da própria Ana Fontes, que fundara a organização seis anos antes.
Além de conhecimentos básicos sobre empreendedorismo e gestão, a Rede Mulher Empreendedora fornece aulas de liderança. Mas não pense você que se trata de habilidades para gestão de colaboradores: o foco é autoliderança e autoconhecimento. O trabalho é para que a mulher conheça suas limitações, mas também suas qualidades; que não se esconda atrás do parceiro na hora de empreender. Que encontre, e assuma, sua força de realização. "A gente só certifica empresas que tenham ao menos 51% do controle no poder das mulheres", explica.
A transformação de Célia não é uma batalha vencida. Se o coração bate, agora, ao ritmo da realização profissional, ainda há uma missão, tão sutil quanto complexa, na qual ela se empenha. "Tento cortar a influência do que os outros vão pensar sobre a minha vida. Essa ainda é uma luta constante na minha cabeça", reconhece.
O que causa estranheza a quem ouve é essas palavras saírem sem reservas e nem carregando o peso e agressividade comuns a quem fala tentando provar algo a alguém. "Todo artista mergulha o pincel em sua própria alma, e pinta nos quadros sua própria natureza", disse no século XIX o clérigo e ativista estadunidense Henry Ward Beecher. Artista que é, o quadro de Célia mostra outra coisa. Talvez baste que uma amiga a convide a tomar um pouco de distância para que ela seja capaz de completar a obra por inteiro.
(*) Adriele Marchesini é jornalista especializada em TI, negócios e Saúde com quase 20 anos de experiência. Depois de passar por redações de veículos como Estadão, Infomoney, ITWeb e CRN Brasil, cofundou as agências essense e Lightkeeper, as quais já ajudaram mais de 80 empresas na construção de conteúdo narrativo multiplataforma para negócios. É cofundadora do Unbox Project e coâncora do podcast Vale do Suplício. Criado pelas jornalistas Adriele Marchesini e Silvia Noara Paladino, o podcast Vale do Suplício nasceu como uma contracultura aos empreendedores de palco - os típicos CEOs de MEI, escritores de textões no LinkedIn - para contar a história de empreendedores que falam pouco, mas fazem muito. Ouça no Spotify.