Rombo na Americanas: quem perdeu e quem ganhou com prejuízos que devem render batalha na Justiça
Varejista já perdeu mais de R$ 9 bi em valor de mercado desde que foi anunciada 'inconsistência' de R$ 20 bilhões na sua contabilidade
A Americanas já perdeu mais de R$ 9 bilhões em valor de mercado desde que foi anunciado um rombo financeiro na companhia, na quarta-feira (11/1).
A varejista informou que foram identificadas "inconsistências em lançamentos contábeis redutores da conta fornecedores realizados em anos anteriores, incluindo o exercício de 2022".
A companhia divulgou ainda que seus então presidente, Sergio Rial, e diretor de relação com investidores, André Covre, que haviam assumido apenas nove dias antes, estavam se demitindo das funções.
O executivo João Guerra, que não tinha envolvimento com a gestão financeira do negócio, assumiu interinamente os dois cargos.
O valor do rombo foi estimado em R$ 20 bilhões em uma análise preliminar e é relacionado a uma operação financeira conhecida como "risco sacado".
Essa operação é comum no varejo. Na prática, a companhia pega dinheiro emprestado com um banco para comprar de fornecedores.
O banco paga aos fornecedores, e a empresa paga ao banco o dinheiro financiado, com juros.
Isso é bom para uma companhia porque o empréstimo tem um prazo de pagamento maior do que o exigido pelos fornecedores, o que deixa mais dinheiro em caixa para a sua operação.
O problema foi que isso não foi informado corretamente no balanço da Americanas.
Em vez de registrar os valores como uma dívida bancária, eles foram informados como dívidas aos fornecedores, e os pagamentos dos juros devidos com essa operação foram contabilizados como uma redução do valor devido aos fornecedores, e não uma despesa financeira.
Isso distorceu seus resultados, porque fez com que as despesas da empresa e seu endividamento aparecessem no balanço com um valor menor do que eram na realidade, e o lucro e o patrimônio líquido (a diferença entre seus bens e suas obrigações financeiras) fossem maiores.
O anúncio pegou o mercado de surpresa, já teve repercussões na Justiça e gerou suspeitas de que pode ter ocorrido uma fraude, o que será investigado.
A BBC News Brasil procurou a Americanas para comentar sobre o caso, mas a empresa se limitou a dizer que "manterá o mercado informado a respeito dos desdobramentos relevantes".
Ações em queda livre
Os maiores prejudicados até agora pela crise foram as dezenas de milhares de investidores que têm ações da companhia, que entraram em queda livre desde o anúncio, com uma desvalorização de quase 85%.
O rombo foi divulgado quando o pregão da Bolsa já havia se encerrado na quarta-feira, então, o maior tombo veio no dia seguinte.
A ação da Americanas fechou na quarta-feira negociada a R$ 12. Isso significava que a empresa valia cerca de R$ 10,83 bilhões.
Na quinta-feira (12/1), os papéis se desvalorizaram mais de 77% e terminaram o dia negociados a R$ 2,72.
As ações se recuperam um pouco na sexta-feira (13/1), para R$ 3,15, mas voltaram a derreter na segunda-feira (16/1).
Seu preço desabou mais de 38% e fechou em R$ 1,94, colocando o valor da companhia em R$ 1,75 bilhão - R$ 9,1 bilhões a menos do que antes da crise.
As ações caíram tanto assim porque o rombo e a saída de Rial minaram a confiança na empresa e sua capacidade de honrar seus compromissos.
Fernando Ferrer, analista da Empiricus Research, aponta que a empresa tem um patrimônio líquido de R$ 14 bilhões, ou seja, R$ 6 bilhões a menos do que o rombo anunciado.
"Isso significa que a empresa tem mais compromissos do que recursos e coloca o patrimônio líquido da empresa no negativo, ou seja, ela está quebrada e vai precisar de uma injeção de capital", diz o analista.
Soma-se a isso uma grande incerteza sobre a real situação da Americanas, porque a empresa foi bastante econômica nas explicações que deu ao mercado.
A própria empresa disse que o tamanho exato do rombo será definido por um comitê independente que foi criado para apurar "as circunstâncias que ocasionaram as referidas inconsistências contábeis".
O valor foi calculado de forma preliminar em R$ 20 bilhões, mas a própria Americanas ressaltou que o montante precisa ser confirmado por auditores independentes.
Em reunião com investidores, feita no dia seguinte ao anúncio do rombo, o ex-presidente Sergio Rial afirmou se tratar da "melhor estimativa do que vimos em nove dias" e que esse problema ocorreu por sete a nove anos nos balanços da companhia.
O executivo também disse não poder afirmar que não há outras inconsistências nos balanços ou presumir que existam, porque teve pouco tempo para avaliar toda a situação.
"Se ele começou a estudar o balanço e descobriu isso em nove dias, pode ser que [o valor] seja bem maior", diz Ferrer.
Prejuízo para investidores
Analistas ouvidos pela BBC News Brasil explicam que o prejuízo foi generalizado porque a Americanas tinha muitos acionistas, e havia um grande interesse grande nos papéis com a expectativa de que eles se valorizariam.
"Quem tomou o maior prejuízo foi o detentor de ação minoritário, que viu uma queda de quase 80% do dia para a noite", diz Phil Soares, chefe de análise de ações da Órama Investimentos.
"Não me lembro de outro caso assim no mercado brasileiro."
Soares ressalta que "mais de 54% das ações estão pulverizadas no mercado".
Ferrer diz que "muita pessoa física vai sair machucada desse processo". "A lista é grande, a Americanas tinha mais de 130 mil CPFs na sua base de acionistas", afirma.
José Eduardo Daronco, analista da Suno Research, diz que só ficaram a salvo da crise os poucos que tinham opções de ações da Americanas.
Quem tem opções pode vender os papéis a um preço pré-determinado em uma data específica. "Mas era um número irrisório, todo mundo perdeu", afirma Daronco.
Além disso, muitas pessoas tinham investimentos atrelados à empresa por meio de fundos que haviam apostado nos papéis da empresa.
Um levantamento da consultoria Economatica para o site Estadão E-Investidor aponta que 1.057 fundos têm investimentos na Americanas.
Um dos casos que mais chamou atenção foi o fundo Reserva Imediata, do banco Nubank, que tinha 1% do seu valor total em debêntures da companhia. Debêntures são títulos de dívida que uma empresa vende para se financiar.
O fundo do Nubank é vendido aos clientes como uma opção de investimento segura, com retornos acima do CDI, um índice de referência do mercado, e de alta liquidez, porque permite resgatar o dinheiro colocado nele no mesmo dia.
Ferrer explica que, com o anúncio do rombo, a nota da Americanas foi rebaixada por agências de avaliação risco, que analisam a capacidade de um devedor pagar seus credores, o que fez os debêntures da empresa se desvalorizarem.
"Uma série de investidores, grandes e pequenos sofreram de forma importante com isso", diz o analista.
Isso prejudicou a rentabilidade do fundo do Nubank, e muitos cotistas reclaram nas redes sociais que estavam perdendo dinheiro.
Em seu perfil, a especialista em finanças pessoais Nathália Rodrigues, mais conhecida como Nath Finanças, criticou o Nubank e recomendou que os cotistas retirassem seus investimentos dele.
"Minha recomendação é essa, independente se você perdeu ou não. Existem locais melhores de se aplicar dinheiro", disse ela em sua conta no Twitter.
O Nubank afirmou à BBC News Brasil que outros fundos também foram afetados, que o aporte feito na Americanas é pequeno e ressaltou que a rentabilidade do fundo acumulada nos últimos 90 dias está positiva.
Erro ou fraude?
Uma queda das ações e outros títulos de uma empresa dá prejuízo aos investidores quando seu valor fica abaixo do que se pagou para comprá-los, mas isso só se concretiza se a pessoa vende os papéis.
Quem levou um baque tem a opção de vender agora e assumir a perda, se tiver a expectativa de que a desvalorização pode ser ainda maior, ou esperar que as ações e títulos se recuperem para evitar sair no negativo.
O Instituto Brasileiro de Cidadania (Ibraci) entrou com uma ação na Justiça pedindo que a Americanas indenize seus investidores por danos materiais e morais causados pelo rombo.
O Ibiraci afirma que os investidores compraram ações da empresa com base nos seus balanços e que "atos ilícitos" e "informações falsas, enganosas ou maquiadas" os induziram a superestimar o valor dos papéis.
Fábio Coelho, presidente da Associação de Investidores no Mercado de Capitais (Amec), diz que o mercado está não só surpreso com o rombo, mas perplexo pela falta de transparência e de respostas dadas pela empresa até agora.
Coelho diz que será preciso apurar a responsabilidade não só dos executivos e do conselho de administração da companhia, mas da consultoria PwC, que auditou e aprovou os últimos balanços da Americanas. A PwC disse à BBC News Brasil que não comenta sobre o caso.
Coelho diz não ser possível neste momento apontar se houve erro ou má-fé, mas avalia que a hipótese de fraude "vem ganhando força" pela semelhança dos acontecimentos atuais com outros casos do tipo, como na Petrobras e na resseguradora IRB Brasil.
"Supostamente houve um problema de classificação contábil, mas o cenário de fraude é possível, e as cenas que estamos assistindo agora se parecem com as destes casos emblemáticos do passado. Isso será apurado", diz Coelho.
A Comissão de Valores Mobiliários, órgão que regula e fiscaliza o mercado de ações, abriu três processos administrativos para investigar a Americanas.
O presidente da Amec diz que os investidores que se sentirem lesados devem primeiro buscar a arbitragem de conflitos da Bolsa antes de recorrer à Justiça.
"A busca por reparação de danos não é um processo rápido. Não será em horas, dias ou semanas, mas o caminho mais adequado é a arbitragem", afirma.
O analista José Eduardo Daronco afirma que havia uma grande demanda pela Americanas no mercado porque a empresa vinha crescendo e poderia aumentar ainda mais suas vendas com a expansão do comércio eletrônico.
"Havia várias recomendações de compra das ações da Americanas por analistas que projetavam que seu preço poderia chegar a R$ 30, R$ 36, R$ 37", afirma.
No portal de relação com investidores, a Americanas lista as recomendações, e 10 entre as 15 informadas indicavam que a ação da companhia atingiria um valor acima do que era negociado antes da crise.
Daronco afirma, no entanto, que não acreditava neste potencial, porque a empresa está em um mercado muito competitivo e vem registrando prejuízos nos últimos trimestres e se endividando para crescer.
"A Americanas, assim como todo o varejo, tem sofrido bastante com a inflação, que corrói o poder compra e faz com que as pessoas consumam menos, o que aumenta a competição. Além disso, os juros altos vinham corroendo seus resultados. Ela estava alavancada e queimando caixa", diz o analista.
Agora, tem um rombo para tapar, e "isso pesou muito", afirma Daronco.
Os principais acionistas
Ninguém teve um prejuízo maior até agora que o trio de bilionários Jorge Paulo Lemann, Marcel Herrmann Telles e Carlos Alberto Sicupira.
Eles já comandaram a empresa e tiveram seu controle acionário. Hoje, são seus acionistas de referência, individualmente ou por meio de fundos.
São chamados assim aqueles que têm uma participação mais relevante em uma companhia e podem influenciar na sua gestão por causa disso.
Lemann e Sicupira também são membros do conselho de administração da companhia.
Os acionistas de referência são donos de 30,13% da Americanas, de acordo com dados da empresa de dezembro de 2022. Eles já perderam mais de R$ 2,73 bilhões com a queda das ações até agora.
A Americanas disse que "os acionistas de referência (...), presentes no quadro acionário há mais de 40 anos, informaram ao conselho de administração que pretendem continuar suportando a companhia".
Eles devem agora desembolsar ao menos R$ 6 bilhões para injetar o capital que a Americanas precisa para cobrir o rombo.
A proposta foi feita, segundo a agência Bloomberg, em uma reunião com os credores da empresa mediada pelo ex-presidente Sergio Rial, que agora trabalha como consultor destes acionistas.
A oferta não agradou os credores, que responderam que o valor é baixo e esperam mais de R$ 10 bilhões, informou a agência.
Eles terão que fazer isso para a Americanas não falir e preservar sua imagem perante o mercado, diz Fernando Ferrer, da Empiricus.
"Essa crise gera um risco reputacional grande não só para a companhia como para os seus acionistas de referência. O quanto antes eles aparecerem e conversarem com o mercado, menor vai ser o desgaste", afirma.
Não houve nenhuma manifestação oficial por parte destes acionistas até o momento.
Mas, segundo apurou o site Reset, Lemann, Sicupira e Telles dizem a pessoas próximas que não têm culpa pelo rombo porque tinham pouco contato com o dia-a-dia do negócio e responsabilizam os executivos da Americanas.
Disputas na Justiça
Os bancos que emprestaram dinheiro para a Americanas também foram envolvidos nesta crise.
A Americanas conseguiu na Justiça impedir por 30 dias a cobrança antecipada de suas dívidas pelos bancos.
A empresa disse que seu endividamento chega a R$ 40 bilhões e que atender aos pedidos de cobrança poderia gerar um tratamento desigual entre seus credores e colocar sua operação e os 100 mil empregos diretos e indiretos gerados pelo negócio em risco.
A dívida da empresa com oito bancos é de R$ 18,7 bilhões, segundo apurou o jornal Valor Econômico, dos quais R$ 13,5 bilhões seriam em risco sacado.
Os maiores credores seriam Bradesco, Santander e Itaú, com valores entre R$ 3,4 bilhões e R$ 4,7 bilhões, de acordo com o jornal.
Um destes bancos, o BTG, tentou sem sucesso reverter judicialmente a moratória das cobranças. Na ação, o banco fez duras críticas à Americanas e aos seus acionistas de referência.
O BTG disse que a companhia agiu premeditadamente e com má-fé para cometer a "maior fraude corporativa de que se tem notícia na história do país".
O banco apontou como evidência disso o fato de que diretores da companhia venderam R$ 223 milhões em ações entre julho e outubro do ano passado.
O Ministério Público Federal de São Paulo disse que vai apurar se eles cometeram crimes. A suspeita levantada é de que eles poderiam ter conhecimento do rombo e venderam ações para não ter prejuízo, o que seria ilegal.
A Americanas não comentou sobre a venda de ações por sua diretoria.
O BTG disse ainda sobre Lemann, Telles e Sicupira que "os três homens mais ricos do Brasil (...) ungidos como uma espécie de semideuses do capitalismo mundial 'do bem'", depois de serem "pegos com a mão no caixa", tiveram a "pachorra" de impedir a cobrança das dívidas para proteger seu patrimônio, estimado em R$ 180 bilhões, segundo o banco.
"É o fraudador pedindo às barras da Justiça proteção 'contra' a sua própria fraude. É o fraudador cumprindo a sua própria profecia, dando verdadeiramente 'uma de maluco para esses caras saberem que é pra valer'", disse o BTG na ação.
O Bank of America também não teve sucesso ao recorrer à Justiça, segundo o Valor, e outros bancos podem acionar a empresa, conforme o andamento das negociações da Americanas com seus credores, que está sendo mediada pelo banco Rothschild & Co.
O analista Fernando Ferrer diz que a negociação é uma perspectiva melhor para os bancos do que se a empresa entrar em um processo de recuperação judicial.
"Enquanto estiver em recuperação, as dívidas não poderão ser executadas, e o banco terá que dar um perdão de parte do valor. Aí, os bancos receberão a metade do que emprestaram no dobro de tempo", afirma.
Quem ganhou?
Em meio a tanto prejuízo, os únicos que saíram "ganhando" nesta crise são os concorrentes da Americanas, dizem analistas.
Phil Soares, da Órama, diz que a Americanas tem uma grande participação de mercado e vinha crescendo em um ritmo acelerado.
"Agora, não vai conseguir manter esse ritmo, e os outros varejistas terão a chance de tomar para si a participação de mercado da Americanas", diz.
O mercado tem sinalizado nesta direção ao comprar ações de concorrentes como Magazine Luiza, que viu suas ações se valorizarem 27% entre quarta-feira e segunda-feira.
O preço da ação do Mercado Livre teve um aumento de 20% no mesmo período.
"Já começamos a ver fornecedores, com a perspectiva de não receber da Americanas, aumentarem seu lastro com outros varejistas", diz Ferrer.
A crise da Americanas deve alterar a competição neste mercado e favorecer outras companhias do varejo.
A Americanas não deve quebrar, diz o analista, mas provavelmente vai diminuir de tamanho e perder consumidores que, por receio de não receber seus produtos, vão comprar de outras empresas.
"Eles terão que arrumar a casa, enquanto isso os competidores vão aproveitar essa oportunidade."