Saúde mental dos nômades digitais: por que eu pendurei a mochila
Existem detalhes que poucos sabem sobre a vida de nômade digital
Pouco mais de um mês após eu deixar a vida nômade para trás e fixar residência em Paris, a BBC publicou uma matéria sobre os profissionais que desistiram de ser nômades digitais.
Perdi a conta de quantas pessoas me enviaram o link do texto, mas na época preferi não entrar na discussão porque 1) a gente não precisa ter opinião sobre tudo (mas olha eu aqui prestes a opinar) e 2) eu ainda precisava de um tempo para digerir essa mudança de status migratório; de nômade a imigrante.
A matéria da BBC, a começar pelo título, é construída a partir de uma narrativa de que as coisas deram errado, uma espécie de prova definitiva de que o estilo de vida nômade é inviável, uma ofensiva contra o trabalho remoto que tornou-se habitual neste contexto pós-pandêmico – assim como essa outra matéria aqui da Bloomberg sobre como os nômades digitais estão trocando o dia pela noite; eu, por exemplo, nunca fiz isso; sempre tive flexibilidade de horários (e planejamento, no caso).
Um pouco da história
Quando meu livro "Nômade Digital: um guia para você viver e trabalhar como e onde quiser" foi lançado em 2019, eu já estava há dois anos na estrada. Ou seja, os nômades digitais estão por aí desde antes da pandemia – que apenas acelerou uma transformação digital e possibilitou o trabalho remoto para profissionais que antes precisavam sair de casa para ligar os seus computadores em outro lugar; um lugar onde chefes dinossauros conseguem supervisioná-los e assediá-los de perto.
Sempre que falo sobre nomadismo digital sou o primeiro a reconhecer meus privilégios (homem branco e heterossexual que teve a oportunidade de estudar) e, mais do que isso, a reconhecer que este estilo de vida não é para todo mundo – mesmo com um livro publicado sobre o tema, eu nunca tentei vender um lifestyle; sempre, sempre frisei que não larguei tudo para viajar o mundo e reforcei a importância de um bom planejamento.
Os problemas relatados pelos personagens da BBC que “desistiram” em nada tem a ver com o nomadismo digital em si; uma blogueira que sofre com ataques de pânico desde os 16 anos e diz que agora que não é mais nômade sua vida melhorou porque pode frequentar a academia (como se não existissem academias em outros países); o escritor que mudou-se para a Espanha e ficou surpreso com, pasmem, a exigência de depósitos de segurança por parte das imobiliárias para alugar um imóvel (falta de pesquisa, de planejamento ou os dois?). A mesma coisa serve para os personagens da Bloomberg, viajantes que trabalham no fuso dos Estados Unidos, mas decidiram viajar pela Ásia; eles não sabiam da diferença de 12 horas antes de entrar no avião?
A viagem como fuga
Na Carta 28, Sêneca retoma o ensinamento de Sócrates de que viajar ou mudar de ambiente não é solução para nossos problemas.
“Você pergunta por que tal fuga não o ajuda? É porque você foge acompanhado de você mesmo. Você deve deixar de lado os fardos da mente; até que você faça isso, nenhum lugar irá satisfazê-lo.”
Como escrevi na última edição da minha newsletter Passageiro no Substack, os seis anos nômades tiveram um grande impacto em minha vida; para o bem e para o mal. Não tenho problemas de adaptação, de modo que hoje sei que posso me virar em qualquer cidade do mundo; da Cidade do México a Bangkok. Por outro lado, convivo com um sentimento constante de não pertencimento; de Paris a Imbituba.
Em minha cidade natal vivem pessoas que amo e sinto saudades, mas não sinto que eu pertença a um lugar específico; não me sinto mais estrangeiro aqui do que lá.
O que percebo agora que tenho um comprovante de residência em um outro país após esses anos todos viajando é que esse sentimento de não pertencimento me acompanha desde a adolescência; são questões complexas que devem ser tratadas na terapia. Viajar (fugir) nunca foi a resposta, ou seja, isso não está relacionado ao nomadismo.
Porque eu deixei de ser nômade digital
Em meus 34 anos de vida, não tenho lembranças de qualquer contexto em qualquer época da minha vida em que senti o tal pertencimento, de modo que a falta dele não foi o motivo de eu ter fixado residência em Paris.
Talvez meu ponto com esse texto seja que eu não desisti de viver uma vida nômade; eu apenas decidi morar na França; são coisas diferentes.
Eu tinha 28 anos quando tornei-me nômade em 2017. De lá para cá foram seis anos de mudanças; dois meses aqui, um ali, três lá, algumas semanas em tal lugar, uma pandemia. Desfazer as malas; fazer as malas. Check in; check out. Seis anos vivendo assim.
Mesmo fazendo o que o pessoal tem chamado de slow travel, cansei de tanta mudança. O que quero nesse momento da minha vida é ter minhas coisinhas (todos os meus pertences viajavam comigo em duas mochilas), regar minhas plantas, adotar um cachorro, comprar livros físicos, ter um escritório fixo e do meu jeito, passar finais de semana aconchegantes com a minha esposa no sofá da nossa própria casa.
De acordo com o meu perfil no NomadList, conheço 16% do mundo; em seis anos foram 30 países, 54 cidades e 356.309 quilômetros rodados. Somando idas e vindas, são onze meses na Tailândia, cinco no México, cinco na Itália, três na África do Sul, três na Argentina, dois em Portugal, dois na Inglaterra, um na Albânia, um na Macedônia do Norte, um na Sérvia, um na Rússia; algumas semanas ou dias em outros 19 países.
Isso quer dizer que o nomadismo digital não funciona? Pelo contrário. Funcionou durante os seis anos incríveis em que viajei pelo mundo. Faria tudo de novo.
O que mudou é que, além desse cansaço, estou seis anos mais velho e as prioridades agora são outras. O ciclo do nomadismo chegou ao fim.
Isso significa eu vou parar de viajar? Não. Significa que viajarei bem menos; mas significa, principalmente, que agora terei um lugar para voltar.
Existe ‘burnout de viagem’?
Falei sobre esse meu cansaço no episódio 3 do Desenrola, o podcast do The Summer Hunter. Ao divulgar a participação em minhas redes sociais, reproduzi um termo que ouvi de uma famosa influenciadora de viagem para explicar a minha situação: “burnout de viagem”. O que eu descobri recentemente é que isso não existe.
O termo tem se espalhado por aí tipo telefone sem fio, porém, como gentilmente me explica a psicóloga e nômade digital Natalia Dalpiaz, fundadora da Prô Mundo que conheci em 2020 na Tailândia quando ficamos “presos” no país asiático assim que as fronteiras internacionais foram fechadas, o burnout está relacionado ao trabalho e precisa ser diferenciado do estresse relacionado às viagens.
“Alguém estar estressado por viver uma vida nômade e não ter residência fixa é uma coisa – a pessoa pode parar de viajar e fixar residência, como você fez. Por outro lado, estar estressado com o trabalho, por qualquer que seja o motivo, é outra coisa – principalmente porque na grande maioria das vezes essa pessoa não pode simplesmente parar de trabalhar. As duas coisas juntas, no entanto, podem desencadear um burnout; a primeira, isolada, não”.
Feito o mea culpa por ter reproduzido um termo que ouvi sem antes pesquisar o real significado, gostaria de enfatizar a importância de estar com a saúde mental em dia caso você opte – espero que após muito planejamento – por cair na estrada e viver uma vida nômade.
(*) Matheus de Souza é escritor, educador e TEDx Speaker. Autor de "Nômade Digital", livro finalista do Prêmio Jabuti.