Sindicato de servidores do Ipea reage a 'ofício da mordaça' e critica 'cerceamento ideológico'
A ameaça de punição de servidores deflagrou a reação do sindicato que representa o corpo técnico do órgão
BRASÍLIA - A ameaça de punição de servidores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) caso divulguem estudos e pesquisas antes de "conclusão e aprovação definitiva" deflagrou a reação do sindicato que representa o corpo técnico do órgão. Em nota, a Afipea-Sindical classificou o ato, que está sendo chamado por pesquisadores de "ofício da mordaça", como assédio institucional e um "passo em direção ao obscurantismo e ao cerceamento ideológico".
O presidente da entidade, José Celso Cardoso Júnior, afirma que o comunicado da presidência do Ipea é um retrocesso e afronta práticas históricas de investigação científica do instituto. "Mesmo durante a ditadura, servidores do Ipea tinham liberdade de confrontar questões e publicar", afirma.
O polêmico ofício é assinado pelo presidente do Ipea, Carlos Von Doellinger, escolhido pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, ainda na campanha de 2018 para comandar o instituto. Enviado na última quinta-feira (4), o documento diz que as pesquisas são "direito patrimonial" do Ipea, e que o desrespeito às normas pode caracterizar infração disciplinar, sujeita a punição.
O comunicado despertou reação negativa no corpo técnico, que vê na medida uma tentativa de coibir publicações de estudos com conteúdo mais crítico a políticas governamentais. O sindicato diz se tratar de tentativa de "controle político-ideológico" e vê na conduta de Doellinger ato de improbidade administrativa.
Como mostrou o Estadão/Broadcast, servidores temem que o episódio transmita a mensagem de que o Ipea agora só vai publicar estudos "chapa-branca", ou seja, alinhados ao governo, o que arranharia a credibilidade e a relevância do órgão. Embora tenha em seu histórico episódios polêmicos envolvendo suspeitas de ingerência política, servidores do Ipea consideram que o corpo técnico é plural em termos de campos de pesquisa e visões.
Além da ameaça de punição, o ofício gerou desconforto porque foram usadas expressões vagas, deixando dúvidas até mesmo sobre a possibilidade de pesquisadores publicarem artigos e estudos em publicações de fora do Ipea, o que geralmente traz prestígio à instituição e agrega conhecimento, pois os textos são revisados por pares do mundo científico. Integrantes do órgão já publicaram em revistas respeitadas internacionalmente, como Nature e Science.
Segundo a Afipea-Sindical, a manifestação pública de servidores é fundamental para a preservação da democracia, e a crítica de políticas é conduta essencial para que os pesquisadores possam embasar o processo de decisão dentro da administração pública.
"A liberdade de expressão e de pensamento e o pluralismo político são condições sem as quais o governo democrático se converte em autocracia", diz a nota da entidade. "O servidor deve lealdade ao interesse público, ainda quando isso implique criticar a orientação governamental da ocasião. Criticar o que está em contradição com o interesse público é conduta admirável nos servidores públicos, sendo absolutamente incompatível com a Constituição Federal furtar-lhes essa prerrogativa."
A assessoria de imprensa do Ipea disse em nota que o ofício "tem como único objetivo informar os agentes públicos sobre a existência de normas que regulamentam a divulgação de estudos realizados" pelo órgão e negou que haja tentativa de cerceamento.
"O critério para que o Ipea produza determinada publicação permanece sendo a aprovação prévia do projeto pela respectiva diretoria de pesquisa e sua inclusão no plano de trabalho em vigência. Os projetos precisam ser aderentes à missão do instituto e ter sido executados com rigor técnico e metodológico aferido por pareceres. O Ipea reitera seu histórico respeito à liberdade de pensamento e de expressão", diz o instituto.
Essa não é a primeira vez que o instituto fica no centro de suspeitas de ingerência. Em 2014, o então diretor de Estudos e Políticas Sociais do Ipea, Herton Araújo, entregou o cargo após a cúpula do órgão impedir a publicação, no período eleitoral, de um estudo inédito sobre a evolução no número de miseráveis no governo Dilma Rousseff (PT).
Em 2007, o então presidente do órgão, Márcio Pochmann, foi acusado de ter feito "expurgos" com o afastamento de quatro pesquisadores críticos às políticas governamentais, dois deles cedidos do BNDES e outros dois sem vínculo empregatício. Na época, ele negou qualquer perseguição.
Mais recentemente, no governo Michel Temer, o chefe do Ipea na ocasião, Ernesto Lozardo, divulgou uma nota contestando informações que estavam em estudo publicado por dois pesquisadores do órgão e que citavam efeitos negativos do teto de gastos, ainda em tramitação no Congresso, sobre os gastos com saúde.