Suspeita de falsificação de tela de R$ 16 milhões de Tarsila do Amaral expõe briga familiar por herança
Herdeiros da artista vive guerra de processos em negócios de milhões; entenda
Colocada à venda na semana passada na feira SP-Arte por R$ 16 milhões, uma pintura atribuída a Tarsila do Amaral e apontada por especialistas ouvidos pelo jornal Folha de S.Paulo como falsa deixou colecionadores e herdeiros da artista preocupados.
Quando morreu, em 1973, aos 86 anos, Tarsila não deixou filhos nem cônjuge. Em 2005, seu espólio passou a ser administrado pelos sobrinhos-netos: Tarsilinha, de 59 anos, Paulo do Amaral Montenegro, 66, Luís Paulo do Amaral, 57, e Heitor do Amaral, 65.
Envolvida há cinco anos numa disputa pelo comando dos direitos autorais da artista, os herdeiros da artista foram pegos de surpresa com a exposição da tela. Em entrevista à Folha, Paula Montenegro afirma desconhecer o quadro e só ter descoberto sua existência pela reportagem.
A tela com casas e coqueiros, uma paisagem tipicamente brasileira que seria da fase "Pau-Brasil" de Tarsila, foi vista por pouquíssima gente. Apesar de estar à venda na SP-Arte, a maior feira do ramo no País, a obra não estava exposta, mas guardada numa mala.
O proprietário da pintura, um homem de 60 anos com sobrenome da elite paulistana, que prefere não se identificar, não mostrou documentação relativa ao histórico do quadro. Ele conta ter trazido a obra para o Brasil há pouco, depois de ela ficar com sua família no Líbano pelos últimos 50 anos.
Briga familiar
O caso da tela supostamente falsa trouxe novamente à tona a questão da briga familiar pela herança da artista. Herdeiros de Tarsila disputam o controle de seus direitos autorais e do licenciamento de produtos que usam suas obras, em cifras que não são reveladas, mas que podem chegar aos milhões. Ao todo, há quase 60 herdeiros, entre sobrinhos e sobrinhos-netos.
A Folha relata que, até mais ou menos 2020, Tarsilinha negociava as parcerias comerciais e as exposições, atuando com o aval dos outros três sócios. O dinheiro advindo dos royalties era dividido igualmente entre os quatro, e, além disso, Tarsilinha recebia 10% do faturamento como pagamento por administrar a empresa. Os sócios se encarregavam de repassar os valores que entravam às outras dezenas de herdeiros.
O dinheiro começou a fluir com as vendas das pinturas "A Lua", para o Museu de Arte de Nova York, o MoMA, em 2019, por um valor estimado à época em R$ 75 milhões, e "A Caipirinha", leiloada no ano seguinte pelo marchand Jones Bergamin por R$ 57,5 milhões.
Embora nem "A Lua" nem "Caipirinha" fossem da família, os Amaral receberam pelas vendas graças ao direito de sequência. Trata-se de uma lei pela qual ao menos 5% do valor da comercialização de uma obra de arte deve ser revertido para o artista, caso esteja vivo, ou para seus herdeiros.
Foi depois da venda dessas duas pinturas que a discórdia se instalou entre os parentes. Tarsilinha relata que a partir daquele momento os três outros sobrinhos-netos passaram a querer participar ativamente da administração dos direitos autorais da tia-avó, pelos quais pouco se interessavam.
Segundo Tarsilinha, Paulo, Luís Paulo e Heitor começaram a excluí-la das decisões, não a deixavam mais assinar os contratos sozinha, como fazia até então, e tramaram para dar um golpe e removê-la do comando do negócio.
Um ponto central da desavença entre os Amaral é um rombo de R$ 1,5 milhão que Tarsilinha teria deixado na empresa, devido à sua contabilidade falha.
O valor, segundo Paulo, foi constatado por uma auditoria que analisou as contas do negócio nos últimos cinco anos — com correções, o buraco hoje soma R$ 2,2 milhões. O valor é agora cobrado na Justiça pelos outros três sócios. Eles moveram um processo contra Tarsilinha pedindo a ela que explique o destino do dinheiro ou então o devolva para a família.
Em outro processo, os três herdeiros acusam a sobrinha-neta de concorrência desleal. De acordo com Solano de Camargo, o advogado deles, Tarsilinha teria fechado negócios paralelos envolvendo os direitos da pintora por outra empresa que não a da família.
Tarsilinha nega a acusação. Ela diz usar sua outra empresa, a Manacá, para escrever livros, fazer palestras e curadorias sobre sua tia-avó com o conhecimento acumulado em décadas de estudo da obra da artista. O advogado dos três herdeiros, por outro lado, cita um caso em que Tarsilinha usou a empresa paralela para atividades de competência do negócio da família.
Em 2015, ela firmou, via Manacá, um contrato com o Theatro Municipal de São Paulo para duas exposições nos espaços do teatro. Uma trataria da vida de Tarsila e outra teria obras suas do acervo de Tarsilinha, como alguns desenhos e objetos diversos. Contudo, ambas as mostras acabaram não acontecendo e o contrato, no valor de R$ 495 mil, foi desfeito.
A Prefeitura de São Paulo abriu um inquérito para averiguar o caso, no âmbito de uma série de investigações de irregularidades na gestão do Theatro Municipal à época. O resultado foi a condenação de Tarsilinha por corrupção, em 2019. A sentença determina que ela deve ressarcir os cofres públicos num valor hoje próximo de R$ 200 mil.
Em meio às desavenças, Tarsilinha — profunda conhecedora da obra tia, que ajudou a negociar as exposições da artista no MoMA e no Masp, o Museu de Arte de São Paulo — deixou a empresa da família. Quem assumiu o comando foi Paola Montenegro, filha de Paulo e sobrinha-bisneta de Tarsila. Paola havia sido contratada pela própria Tarsilinha em 2021 para cuidar das redes sociais e do site oficial da pintora. Com 29 anos e um diploma de propaganda, ela passou a dar a palavra final nas exposições e produtos de Tarsila.