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'Terapia de choque' de Milei: o que muda com 'decretaço' que alterou e revogou centenas de leis na Argentina

Medidas anunciadas pelo novo presidente argentino promovem mudanças radicais em vários setores e desregulamentam a economia; ações foram recebidas com protestos nas ruas e críticas da oposição.

21 dez 2023 - 10h49
(atualizado às 15h02)
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Novo presidente argentino anunciou mais de 300 medidas para desregulamentar economia
Novo presidente argentino anunciou mais de 300 medidas para desregulamentar economia
Foto: Presidência da Argentina / BBC News Brasil

Um dia após anunciar mais de 300 medidas que promovem mudanças radicais em vários setores econômicos da Argentina, o novo presidente do país, Javier Milei, disse que outras iniciativas do tipo serão divulgadas em breve e criticou os que protestaram contra as suas ações.

O "decretaço" de Milei — como vários meios de comunicação argentinos apelidaram o pacote — faz parte da "terapia de choque" que o argentino prometeu realizar em sua campanha eleitoral para solucionar as inúmeras crises do país, como a inflação de três dígitos, o aumento da pobreza e a escassez de reservas em moeda estrangeira.

As ações foram recebidas com manifestações nas ruas de Buenos Aires e protestos da oposição, que deverá recorrer à Justiça para tentar frear as medidas.

O Decreto de Necessidade e Urgência que Milei anunciou em pronunciamento na televisão na quarta-feira (20/12), contém uma série de medidas para desregulamentar a economia — incluindo a revogação de diversas leis e controles que, do seu ponto de vista, restringem a atividade econômica.

O "decretaço" modifica ou revoga cerca de 300 leis em vigor hoje e trará grandes mudanças em setores diversos como imobiliário, supermercados, turismo, venda de automóveis, medicina e área de trabalho (leia no final desta reportagem 30 mudanças listadas pelo presidente argentino).

Segundo o governo, as mudanças eliminarão burocracias e obstáculos que dificultam a vida dos argentinos e ajudarão a impulsionar setores econômicos atualmente negligenciados, modernizando o Estado.

Para os críticos, no entanto, a desregulamentação da economia beneficiará os empresários e deixará desamparados muitos argentinos comuns.

Protestos nas ruas

Assim que terminou a transmissão do discurso, houve panelaços e buzinaços em diferentes bairros da cidade de Buenos Aires e sua província.

Alguns também questionaram a legalidade das propostas. Parlamentares da oposição criticaram Milei por "ignorar" o Congresso e modificar e revogar regulamentos sem um debate parlamentar.

Analistas disseram acreditar que serão apresentados recursos judiciais contra o decreto nos próximos dias — o que poderia afetar quando e como as disposições entrariam em vigor.

O discurso de Milei estava previsto para ser transmitido ao meio-dia da quarta-feira, mas foi prorrogado devido à alta tensão no centro de Buenos Aires.

Isso porque, como de praxe no dia 20 de dezembro, passeatas haviam sido convocadas para lembrar vítimas da violenta repressão que marcou o fim do governo de Fernando de la Rúa, em 2001.

À noite, centenas de pessoas marcharam pelo centro de Buenos Aires com as panelas nas mãos, muitas deles em direção ao Congresso argentino, mesmo após governo Milei ter ameaçado cortar benefícios sociais de manifestantes que bloqueassem as vias.

Milei, por sua vez, afirmou que "aqueles que saíram para bater panela têm síndrome de Estocolmo".

"Basicamente, estão abraçadas e apaixonadas pelo modelo que as empobrece, mas essa não é a maioria dos argentinos", afirmou Milei à rádio Rivadavia.

Refereindo-se aos manifestantes, o presidente disse ainda que "há pessoas que olham o comunismo com nostalgia, amor e carinho".

Durante toda sua campanha à presidência, o ultraliberal prometeu uma "terapia de choque" para solucionar as inúmeras crises do país, desde a inflação de três dígitos até o aumento da pobreza e a escassez de reservas em moeda estrangeira.

Antes, apenas dois dias após a posse de Milei, o ministro da Economia, Luis Caputo, já havia anunciado as primeiras 10 medidas econômicas de seu governo.

Elas incluíam uma nova taxa de câmbio do dólar e o corte de ministérios. Não houve referência a duas das principais propostas que Milei fez durante sua campanha: a dolarização da economia argentina e o fechamento do Banco Central.

Argentinos protestaram contra governo Milei em Buenos Aires nesta quarta-feira
Argentinos protestaram contra governo Milei em Buenos Aires nesta quarta-feira
Foto: EPA / BBC News Brasil

O texto do decreto anunciado por Milei na quarta-feira, que tem 83 páginas e 366 artigos, estabelece a "desregulamentação do comércio, dos serviços e da indústria em todo o território nacional", ao mesmo tempo que confere ao Estado o poder de promover "um sistema econômico baseado em decisões livres".

O texto diz que "serão nulas todas as restrições à oferta de bens e serviços, bem como qualquer exigência regulatória que distorça os preços de mercado, impeça a livre iniciativa privada ou impeça a interação espontânea da oferta e da procura".

"Hoje iniciamos formalmente o caminho da reconstrução", disse Milei.

Num discurso lido, ele apontou o déficit fiscal como responsável pelos males que afligiram a economia do seu país durante o século passado e atribuiu a sua origem a políticos que aplicaram uma "receita" errada.

"Argentinos, hoje é um dia histórico para o nosso país, depois de décadas de fracasso, empobrecimento e anomalias", disse ele antes de listar 30 medidas.

Milei fez seu discurso na Casa Rosada, sede da presidência argentina, acompanhado por todos os seus ministros.

Especialistas em direito constitucional consultados pelo jornal argentino La Nación dizem que o decreto não atende aos requisitos da Constituição.

Segundo eles, Milei ultrapassou seus poderes, avançando sobre as competências do Congresso.

Nas redes sociais, o-presidente argentino Alberto Fernández criticou as medidas de Milei, descrevendo o anúncio como um "evento de extrema gravidade institucional nunca antes visto".

"O Poder Executivo, num ato de claro abuso de poder, avançou sobre as atribuições exclusivas do Poder Legislativo", escreveu Fernández.

Mais privatizações, menos controle

Com o argumento de necessidade e urgência, o governo ordenou a revogação de inúmeras leis, incluindo relacionadas a aluguel, promoção industrial, promoção comercial, entre outras.

As medidas também preveem a conversão de empresas estatais em sociedades anônimas, uma forma de preparar o caminho para a privatização.

No caso da Aerolíneas Argentinas, é estabelecida uma autorização para a transferência total ou parcial do pacote de ações.

O pacote de medidas também procura, segundo o governo, facilitar o comércio internacional através da reforma do Código Aduaneiro.

Decreto Milei autoriza a transferência total ou parcial das ações da Aerolíneas Argentinas
Decreto Milei autoriza a transferência total ou parcial das ações da Aerolíneas Argentinas
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Outra área afetada é a medicina privada, além do regime das empresas farmacêuticas — com a intenção de incentivar a concorrência para a redução de custos.

O monopólio das agências de turismo também é eliminado pela medida e a desregulamentação dos serviços de internet via satélite busca permitir a entrada de novas empresas como a Starlink, do bilionário Elon Musk.

O decreto assinado por Milei estabelece que a declaração de emergência econômica será prorrogada por um período de dois anos e, como resultado, o governo terá poderes para reformar inúmeras leis por decreto.

Após anúncio de Milei, centenas de pessoas se reuniram em frente ao Congresso argentino para protestar
Após anúncio de Milei, centenas de pessoas se reuniram em frente ao Congresso argentino para protestar
Foto: EPA / BBC News Brasil

O anúncio ocorreu poucas horas após o governo enfrentar sua primeira marcha nas ruas, apenas 10 dias após tomar posse.

E ocorreu num dia delicado para muitos argentinos, já que em 20 de dezembro homenageiam-se os mortos nos protestos de 2001, que levaram à renúncia do então presidente Fernando de la Rúa.

O novo presidente ainda precisa dar detalhes sobre o pacote de leis que pretende enviar ao Congresso e que será a última etapa do seu chamado "plano motosserra" para mudar a Argentina.

30 medidas citadas por Milei

Em seu discurso em cadeia nacional, Milei listou 30 medidas que fazem parte de seu "decretazo". Confira a seguir as iniciativas, acompanhadas das justificativas citadas pelo presidente argentino para cada uma.

1. Revogação da Lei do Arrendamento, para que o mercado imobiliário volte a funcionar bem e para que o arrendamento não seja uma odisseia.

2. Revogação da Lei de Abastecimento, para que o Estado nunca mais ataque os direitos de propriedade dos particulares.

3. Revogação da Lei das Gôndolas, para que o Estado deixe de interferir nas decisões dos comerciantes argentinos.

4. Revogação da Lei Nacional de Compras, que beneficia apenas alguns atores poderosos.

5. Revogação do Observatório de Preços do Ministério da Economia, para evitar a perseguição às empresas.

6. Revogação da Lei de Promoção Industrial.

7. Revogação da Lei de Promoção Comercial.

8. Revogação da regulamentação que impede a privatização de empresas públicas.

9. Revogação do regime das Empresas Estatais.

10. Transformação de todas as empresas do Estado em sociedades anônimas para posterior privatização.

11. Modernização do regime laboral para facilitar o processo de geração de emprego genuíno.

12. Reforma do Código Aduaneiro para facilitar o comércio internacional.

13. Revogação da Lei de Terras para promover investimentos.

14. Modificação da Lei de Combate ao Fogo.

15. Revogação das obrigações que as usinas têm em relação à produção de açúcar.

16. Liberação do regime jurídico aplicável ao sector vitivinícola.

17. Revogação do sistema nacional de comércio mineiro e do Banco de Informação Mineira.

18. Autorização para transferência do pacote total ou parcial de ações da Aerolíneas Argentinas.

19. Implementação da política de céu aberto.

20. Alteração do Código Civil e Comercial para reforçar o princípio da liberdade contratual entre as partes.

21. Modificação do Código Civil e Comercial para garantir que as obrigações contraídas em moeda estrangeira sejam pagas na moeda acordada.

22. Alteração do quadro regulamentar da medicina pré-paga e das obras sociais.

23. Eliminação das restrições de preços na indústria pré-paga.

24. Incorporação das empresas de medicamentos pré-pagos no regime de assistência social.

25. Estabelecimento de prescrição eletrônica para agilizar o atendimento e minimizar custos.

26. Alterações ao regime das empresas farmacêuticas para promover a concorrência e reduzir custos.

27. Alteração da Lei das Sociedades Comerciais para que os clubes de futebol possam tornar-se sociedades anônimas se assim o desejarem.

28. Desregulamentação dos serviços de internet via satélite.

29. Desregulamentação do setor do turismo, eliminando o monopólio das agências de turismo.

30. Incorporação de ferramentas digitais para procedimentos de registro automotivo.

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