Uma única pessoa passando fome em 2019 'ainda é muito'
Pesquisadora também defendeu a necessidade de diminuir a diferença entre a "colheita potencial e a real" e pregou a redução de desperdício
Diante de um cenário em que pelo menos 800 milhões de pessoas passam fome diariamente, a cientista Louise Ottilie Fresco, presidente da Universidade de Wageningen, na Holanda, diz que a existência de uma pessoa sequer que sofra de má nutrição em 2019 "ainda é muito".
Na entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo e ao Broadcast (sistema de notícias em tempo real do Grupo Estado), a pesquisadora da principal universidade de Ciências Agrárias e Inovação na produção de alimentos afirma que, para reduzir a insegurança alimentar, é preciso promover governos mais estáveis em regiões de conflitos, acabar com guerras civis em áreas de risco, melhorar a distribuição de alimentos e adotar novas práticas no campo. Propõe, também, o desenvolvimento de melhores métodos de cultivo, favorecendo as condições de trabalho e conectando os vários elos da cadeia de produção de alimentos.
A pesquisadora também defendeu a necessidade de diminuir a diferença entre a "colheita potencial e a real", e pregou a redução das perdas nos processos pós-colheita, assim como o desperdício de alimentos. "Novas tecnologias, melhores sistemas de gestão agrícola e uma melhor educação para os agricultores farão diferença total", disse a autora do livro Hambúrgueres no Paraíso: As Histórias Por Trás da Comida Que Comemos (tradução livre - sem edição no Brasil).
Louise também fala sobre a obesidade, que atinge 33 milhões de brasileiros e é vista como um problema global, já que é considerada por especialistas "o outro lado" da insegurança alimentar. "Precisamos aprender a lidar com a abundância de alimentos pela primeira vez na história da humanidade e a responsabilidade de fazê-lo está nos governos, na indústria de processamento de alimentos e no varejo".
Abaixo, os principais trechos da entrevista:
A população mundial está aumentando, mas não a área agricultável. Você acredita que a carne sintética será considerada uma solução real para alimentar nosso planeta?
Não, não acho que a carne sintética seja uma parte obrigatória da solução. Existe terra agricultável suficiente para alimentar a crescente população mundial. No longo prazo, as pessoas provavelmente comerão menos carne. As culturas proteicas, como uma grande variedade de feijões, cogumelos ou produtos fermentados, contribuirão para uma dieta rica em proteínas e vitaminas bem equilibrada. Não é necessário substituir a carne por carne sintética ou soja processada que tenha textura ou semelhanças com a carne.
Dito isto, gostaria de salientar que é da maior importância melhorar os sistemas de produção agrícola. A diferença de rendimento entre a colheita potencial e a colheita real é muito grande em muitas regiões do mundo e há muitas perdas pós-colheita.
Novas tecnologias, melhores sistemas de gestão agrícola e melhor educação para os agricultores farão uma diferença total. É claro que os agricultores devem ser capazes de ter uma vida decente para suas famílias e, é claro, o trabalho não deve ser tão difícil quanto é agora em muitas partes do mundo.
Hoje há comida suficiente para alimentar 7,5 bilhões de pessoas, mas mais de 800 milhões passam fome diariamente ainda hoje. Como podemos melhorar a distribuição de comida?
Não é apenas uma questão de melhorar a distribuição. Nunca antes na história da humanidade uma proporção tão pequena de pessoas sofre com a má nutrição. No início do século passado, estimava-se que quase metade da população mundial tinha de lidar com a escassez de alimentos e a má nutrição, causando doenças por causa da deficiência de nutrientes.
Tendo dito isso, reforço que qualquer pessoa que sofra de fome (em 2019) ainda é muito. Quando olhamos para as causas, é óbvio que as regiões problemáticas estão sofrendo com a guerra, a instabilidade política e as ditaduras corruptas. Porém, antes de pensar apenas em melhorar a distribuição, o que também é necessário, é melhor trabalhar com governança estável e acabar com conflitos e guerras civis.
Além da fome, a obesidade é o outro lado da insegurança alimentar. Existem 33 milhões de pessoas obesas no Brasil e 670 milhões no mundo. Você acredita que dietas saudáveis não têm promoção? Como isso poderia ser resolvido?
A obesidade é um grande problema, e precisa ser levada em consideração ao se discutir a questão de saúde pública e os planos de saúde. Precisamos aprender a lidar com a abundância de alimentos pela primeira vez na história da humanidade e a responsabilidade de fazê-lo está nos governos, na indústria de processamento de alimentos e nos negócios de varejo.
É uma questão de melhorar os produtos alimentares, ensinar as pessoas como cozinhar refeições saudáveis e manter dietas saudáveis. Existe a necessidade não apenas de promover dietas saudáveis, mas também de uma política alimentar nacional integral desde a produção até o consumo. Isso levará tempo.
Como promover dietas saudáveis e ambientalmente sustentáveis sem prejudicar o desenvolvimento da indústria de alimentos?
Não vejo como isso possa impedir o desenvolvimento da indústria de alimentos. Pelo contrário, é uma chance de desenvolver novos e melhores produtos. A indústria alimentícia pode e deve fazer parte da solução.
Hoje em dia existem algumas declarações quase "religiosas". Algumas pessoas dizem que "o açúcar é ruim", outras dizem que é uma regra que devemos evitar o glúten ou, por exemplo, ovos são maus um dia e, no outro, saudáveis. Como a mensagem dos cientistas pode ser mais precisa em tempos de desinformação e fake news?
Isso de fato é um grande problema. Por meio da internet e das mídias sociais, as pessoas têm acesso a informações não filtradas, muitas vezes preconceituosas. Os algoritmos são a causa desse viés de confirmação: eles procuram por informações que você queira ouvir. Vejo como missão da Ciência e dos cientistas apresentar informação correta e fazê-lo de forma que seja aceita (e compreendida) pela maioria das pessoas. A mensagem básica é simples: tenha uma dieta variada e não coma nada em excesso.