Canberra — Aos 8 anos de idade, Edvaldo Valério acordava às 4h da madrugada para nadar. Passava três horas de seu dia dentro de ônibus para ir e voltar dos treinos no clube do Golfinho, acompanhado por sua mãe Aina. "Eu reclamava todo dia", lembra Edvaldo. "Vivia cansado."
A trajetória improvável do garoto de Itapoã até a elite do esporte mundial torna inevitável a pergunta: quantos talentos não estarão perdidos pelo Brasil? Se o "Bala", hoje com 22 anos, primeiro nadador negro — e baiano — a defender o Brasil em uma Olimpíada, está nos Jogos de Sydney é porque, além de nadar como poucas pessoas no mundo, possui uma determinação absolutamente incomum. E por causa de um encontro, há 14 anos, que uniu duas vidas num ideal esportivo.
O atleta, que em Sydney compete nos 50m e 4 x 100m e 4 x 200m, livre, quando criança preferia as piscinas ao mar. Começou a nadar aos 3 anos de idade, no próprio bairro.
Cinco anos mais tarde, o professor Sérgio Silva chamava seu irmão Sidney para ver "um menino que nadava muito rápido". Começava a parceria entre Edvaldo e Sérgio.
"Se não tivesse conhecido o Sérgio, não estaria aqui hoje, conversando com você", diz o nadador, navegando na Internet depois dos treinos, ontem, na piscina do Instituto Australiano de Esporte (IAE). Edvaldo fala baixo, baianamente manso, e não desperdiça palavras. "Se a gente não é família de sangue, é de coração".
Em 1997, começou a ganhar algum dinheiro com a natação. Comprou um Voyage usado para a família, e o pai o levava para os treinos no bairro Costa Azul. Isso permitia que fosse ao clube duas vezes no mesmo dia, para intensificar a preparação. Ainda assim, os treinos da manhã não podiam acontecer mais de três vezes por semana, por causa dos gastos com a gasolina.
Hoje ele não precisa se preocupar com dinheiro e mora há 15 metros do clube. Foi preciso muita pressão do técnico e do patrocinador para tirá-lo do bairro onde cresceu e estão todos os amigos e parentes: "Sou muito apegado a Itapoã, realmente".
No bairro novo, não conhece ninguém, só os amigos de treino. E não gosta de morar em apartamento. Mas não tem muito tempo para sair mesmo. Quando pode, quer descansar, o que ficou difícil depois das vitórias recentes no Campeonato Brasileiro. Gosta de TV, mas também não tem tempo para assistir. Nos últimos carnavais, estava sempre competindo.
Para entender o Bala da Seleção Brasileira de natação, é preciso lembrar-se sempre de que ele é baiano. Cem por cento.
Escuta Harmonia do Samba, Chiclete com Banana, Nossa Juventude e Ivete Sangalo no discman, enquanto espera o ônibus alugado pelo Comitê Olímpico Brasileiro (COB) sair do City Gateway Motel, em Camberra, para a piscina do IAE.
Reclama do frio de oito graus e explica: "Baiano sente demais". Come acarajé, com moderação. Defende a escalação de Wesley (do Bahia) quando a equipe de natação discute futebol, (numa típica discussão sobre futebol, que é igual em uma piscina na Austrália ou em uma esquina de Salvador). Seu médico é baiano. E o preparador físico, o fisiologista e o nutricionista, também.
"É incomparável. Não existe lugar como a Bahia", resume. Mas o amor pela terra tem momentos de desilusão.
Em 1994, Edvaldo quebrou um recorde baiano de natação. "Quase parei de nadar", conta o Bala. "Para mim, aquilo era uma glória e eu esperava ser procurado pela mídia, conseguir um patrocínio. Não aconteceu nada disso. Ficava me perguntando: "Porque eu tô aqui?’".
O pai, que também se chama Edvaldo, o convenceu a continuar. Quando cita um ídolo, é ele o primeiro de quem se lembra. Depois, Ayrton Senna.
Da utopia à realidade
Canberra — Quando Sérgio Silva começou a buscar apoio para o projeto que chamou de Sydney 2000, não encontrou muitas portas abertas. A idéia: colocar um nadador baiano nas Olimpíadas. Em 1997, até para ele, aquilo parecia um sonho.
O treinador, que tem 34 anos de experiência, percorria a cidade em busca de apoio. Edvaldo Valério seguia a rotina puxada de treinos diários, às 5h e 17h, para evitar o calor forte de Salvador.
Naquele ano, houve um campeonato brasileiro em Aracaju. Como a viagem de Salvador para a capital sergipana não era muito cara, ele pôde ir. Edvaldo fez o tempo de 52,70s. Chamou a atenção de um representante da Federação Brasileira de Natação. "Eu sei que ele pode ser um velocista", disse Silva na época, "mas não tem dinheiro para ir às competições".
Edvaldo participava, meio a contragosto, de provas em águas abertas. Quando ganhava, guardava o dinheiro da premiação para viajar a outros campeonatos. "É difícil, muito diferente da piscina", compara o nadador. "Não gosto de nadar no mar, é muito arriscado".
Em julho de 1997, o presidente da Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos (CBDA), Coaracy Nunes, foi a Salvador. "Ele me disse: ‘não admito mais que você deixe esse menino nadar em águas abertas’", conta Silva. Sua influência trouxe o presidente do Banco do Estado da Bahia (Baneb) para o projeto (Edvaldo treina no clube dos empregadores do banco).
Em seguida, mudou a gerência de marketing da instituição, assumida por uma mulher. Edvaldo acabava de ganhar mais um anjo da guarda: Tânia Cardoso. O Bala abre um sorriso quando escuta seu nome.
Separação dos pais
Ela passou a acreditar no projeto mais até que o próprio técnico. Convocou um café da manhã no Clube da Imprensa, em Salvador, para apresentar a proposta de levar um nadador baiano aos últimos Jogos Olímpicos do milênio.
"Esse projeto é tão utópico quanto Sydney é longe", teria comentado um jornalista. Edvaldo já era o campeão brasileiro júnior e, em maio de 1997, ficou em terceiro lugar no Campeonato Nacional, em Belo Horizonte.
A medalha abriu o caminho para o Mundial de Pert, também na Austrália, em 1998. Sydney ficou mais perto. "Na época pensei: ‘Pert é mais longe que Sydney’. Isso eu já venci", lembra Silva. "Agora tinha que colocá-lo nas Olimpíadas".
No caminho estavam os Jogos Pan-Americanos de Winnipeg. Dois meses antes da última seletiva, os pais do nadador se separaram. Ele perdeu a competição e viajou para o campeonato como reserva. Em junho do ano passado, recuperou sua posição com a terceira colocação no Troféu Brasil.
Faltavam duas seletivas para Sydney quando o banco fechou um convênio com o Vasco da Gama. Edvaldo, é claro, não saiu da Bahia por causa disso.
Em junho último, no Troféu José Finkel, levou o ouro nos 50m, 100m e 200m, livre. "Agora, queremos levar uma medalha para o Brasil", explica o treinador. "Seja ela de que cor for".
Correio Braziliense