Paris - A Comissão Européia pode ser responsável por uma reforma sem precedentes no sistema de transferências de jogadores profissionais no futebol europeu que, implantada, terá reflexos quase imediatos em nível mundial. A entidade exige a revisão do atual sistema, para adaptá-lo ao direito trabalhista europeu, e deverá decidir até o fim do ano se aceita ou não as propostas apresentadas na terça-feira pela "Task Force", o grupo de trabalho da Fifa e da Uefa, instâncias máximas do futebol mundial e europeu.
Há, porém, vários pontos divergentes entre o teor do documento e a posição da comissão. A CE (o governo da Europa) insiste no princípio da livre circulação e, se o seu ponto de vista prevalecer, a reforma mostrará-se mais profunda do que a proporcionada pelo "caso Bosman'', que em 1995 liberou o número de jogadores estrangeiros em clubes europeus, desde que originários de um dos 15 países da União Européia. Isso porque os jogadores poderão, possivelmente a partir de 2002, escolher os clubes onde irão trabalhar.
Na proposta elaborada pela "Task Force'' destacam-se a proibição de transferências internacionais dos atletas com menos de 18 anos; um sistema de compensação para os clubes formadores quando da transferência de jogadores até 23 anos; respeito pelos prazos de um contrato mínimo (de 1 a 3 anos) pelos clubes e jogadores; instauração de período de transferências e adoção de regras de transição.
Aviso prévio - Dificilmente a maior parte dessas reivindicações será aceita pela Comissão Européia, que defende a adoção do aviso prévio como forma de ruptura de contrato, como prevê o direito trabalhista europeu. Isto faria prevalecer o princípio da livre circulação.
Outro empecilho para a aceitação das propostas da Fifa e da Uefa é que elas não são endossadas em seu conjunto pelo Fipro, o sindicato que representa os jogadores. O sindicato, inclusive, retirou-se das negociações com a "Task Force''.
Diante desse quadro, Fifa e Uefa não terão outra alternativa senão a de aceitar a decisão das autoridades européias, buscando apenas obter uma maior flexibilidade (maiores prazos) na aplicação da nova legislação.
Um dos poucos pontos de convergência entre Fifa, Uefa, Comissão Européia e os representantes dos jogadores é o que propõe limitar mudanças de clube a uma vez por temporada. Com isso, evitariam-se casos como o do jogador africano Kaba Diawara, que passou por sete clubes da França e da Inglaterra em apenas dois anos.
O impedimento das transferências de menores de 18 anos é outro ponto de possível acordo.
Outro foco - Um dos objetivos do novo modelo é acabar com o atual sistema de transferências milionárias, cujo principal exemplo foi a contratação do português Figo do Barcelona pelo Real Madrid por quase US$ 60 milhões. A mudança contribuirá, entretanto, para valorizar ainda mais os salários dos grandes profissionais, mas vai retirar do clube o direito a enormes indenizações quando das transferências.
A evolução vai contribuir também para reduzir o espaço dos intermediários, os agentes de jogadores, grandes beneficiários dessas transferências. O objetivo é moralizar as negociações financeiras, nem sempre muito transparentes.
O sistema em vigor, segundo os comissários europeus, sempre esteve em contradição com os princípios da concorrência e livre circulação dos trabalhadores pela União Européia.
Desde o final de 1998, a Comissão Européia vem insistindo com a Fifa para adaptar seus regulamentos à legislação do continente, mas essa entidade decidiu "empurrar com a barriga", acreditando que os comissários de Bruxelas iriam abandonar esse projeto e fazer do futebol uma exceção comunitária. Os dirigentes do futebol, porém, enganaram-se inteiramente.
O atual secretário-geral da Fifa, Michel Zen Ruffinem, não tem grandes ilusões em relação a aprovação do estudo feito pela "Task Force". Até porque os comissários europeus encarregados da concorrência e do esporte, Mario Monti e Vivianne Reding, advertiram que as propostas constituem apenas uma colaboração dos dirigentes.
Como a maior parte das propostas da Fifa e da Uefa fere o princípio básico comunitário de livre circulação dos trabalhadores, o máximo que os dirigentes poderão obter será um prazo de adaptação para os clubes às novas normas comunitárias, que deverão entrar em vigor a partir de 2002.
Divergências - A Fifa e a Uefa mais uma vez revelaram suas fortes divergências. Enquanto a Fifa parece mais resignada, a Uefa, pressionada pelo lobby dos 14 grandes clubes europeus, tudo fez para que se mantivesse o sistema atual.
Em Bruxelas, já é possível filtrar os primeiros comentários dos burocratas encarregados de examinar o texto. "Nos parece que nele estão inseridas muitas incoerências e contradições", afirmou um alto funcionário do gabinete da comissária européia Viviane Reding.
Os problemas para o presidente da Fifa, Joseph Blatter, estão apenas começando, mesmo porque, com o anunciado fim do sistema atual de transferências na Europa, os jogadores do resto do mundo vão cobrar o mesmo tipo de tratamento.