Tamara Klink: liberdade, autoconhecimento, conceito de sucesso e protagonismo feminino
A jovem velejadora contou detalhes de sua trajetória profissional e pessoal durante a aventura 'Invernagem no Ártico em Solitário'
Tamara Klink é uma jovem mulher. Jovem, corajosa, inquieta e atrevida. Privilegiada? Sim. Foi isso que a levou a se tornar a primeira mulher a completar o período inteiro de inverno no Ártico? Não. Tive o prazer de conversar com ela dias antes de começar a Olimpíada de Paris. Eu estava me preparando para apresentar o Paris É Delas aqui no Terra e nada melhor do que abrir os trabalhos sobre protagonismo feminino (no esporte e na vida) ouvindo uma ativista da causa e atleta de altíssimo rendimento.
Com três expedições na bagagem, a velejadora começou no ano passado sua quarta aventura: a Invernagem no Ártico em Solitário. Ela saiu da França em julho, navegou por 20 dias até a Baía Disko, na costa oeste da Groenlândia, e ancorou seu barquinho num fiorde inabitado. Ali passou oito meses vivendo absolutamente sozinha no frio extremo, seis meses presa no gelo, quatro meses sem ver humanos e três meses na escuridão, sem ver a luz do sol. O Sardinha 2 é um veleiro de aço com 10 metros de comprimento - pequeno, mas confortável. Tem cama, fogão a gás e um aquecedor a diesel. A água para beber e cozinhar vem do mar e dos icebergs e a energia elétrica chega através dos ventos (gerador eólico) e do sol (painéis solares). O banheiro é um balde. O período extremo já passou, e a Tamara agora vai retomando gradativamente a vida em sociedade e acompanhando a chegada do verão no Ártico.
“Não sei por que exatamente, mas no inverno eu senti que tinha tudo o que poderia querer. Talvez porque realmente tinha tudo, ou porque não tinha opção, ou porque não tinha tentação. Mas eu estava satisfeita, feliz, não tinha nem medo de morrer. Eu pensava: ‘Quero viver, gosto da vida, gosto de andar por aqui, me sinto feliz, me divirto muito, me interesso por outros seres vivos, animais, plantas... Tenho vontade de reencontrar seres humanos que eu gosto, amo as pessoas’. Mas, sinceramente, se tivesse que ser a hora, apesar de querer continuar viva, acho que estaria tudo certo. Porque eu teria vivido o que eu quis, porque acho que o que vivi de bom e de ruim serviu para chegar aqui agora e me sentir em paz, porque não teria nenhum arrependimento”.
Ao dividir sua sensação de plenitude e liberdade, Tamara faz uma analogia à conquista de uma medalha, à subida a um pódio olímpico, e lembra o quão etéreo e abstrato pode ser tudo isso. “Quando se está no alto rendimento, talvez em alguns microssegundos em que a gente sobe num pódio, sente realmente que conseguiu, mas quando a gente desce e volta para casa carregando um pedaço de metal (medalha) talvez a gente comece a sentir falta de alguma coisa a mais. E esse sentimento de subir no pódio foi o que senti durante todos os meses em que fiquei só. Estava muito feliz de estar lá. E era uma felicidade sem distintivo, sem fogos de artifício, não tinha homenagem, não tinha aplausos, não tinha nota no jornal, troféu, música, nada. Era só estar lá”.
Para ela o desfrute de tudo e de tanto é o que mais faz sentido. “Eu acredito com toda a minha convicção que qualquer pessoa pode acessar essa satisfação de estar viva. E acho que a gente não acessa porque usamos muito pouco o que já temos, que é o nosso corpo, que são os nossos sentidos: o olho, a boca, o nariz, o ouvido, o tato. Nossos sentidos são a nossa fonte de felicidade. Os momentos de maior felicidade foram os momentos em que eu estava caminhando por horas, sozinha, sobre o mar congelado. Pensava: ‘Aqui não sou mulher, não sou nova, não sou velha; sou só um bípede, sou só um ser sem pelos, sou só um ser humano...’. E me sentia profundamente feliz por estar ali, sentindo”.
A velejadora conta que sua avó Anna foi a grande entusiasta e encorajadora da aventura e que foi dela a ideia do nome do barco. “Ela disse: ‘Sardinha! Sardinha é um peixe pequenininho igual ao seu barco, ninguém dá nada por elas, mas elas atravessam grandes distâncias e nunca estão sozinhas, estão sempre em cardume’. Sardinha, nome feminino, em português. Gostei!”. Também contou que os pais, os velejadores Marina e Amyr Klink, foram contra o projeto por acharem que seria perigoso demais e por entenderem que ela não estava preparada. “Meninas não aprendem a correr riscos por opção, a conhecer seus corpos, seus limites. Os meninos são estimulados a arriscar, a enfrentar, a descobrir, a experimentar o uso do corpo, da cabeça; a gente não. Somos estimuladas a nos preservar, a evitar correr perigo. A gente não tem direito ao perigo. Todo mundo nos cerca e nos diz: ‘Não, vai ser perigoso demais, você não vai conseguir’. Então a gente cresce ouvindo que a gente não consegue, que a gente é incapaz”.
Com a franqueza e a clareza de uma mulher livre que enfrentou muitos desafios durante oito longos meses de frio extremo, escuridão, silêncio, solidão e perrengues que poderiam ter lhe custado a vida (quando, por exemplo, caiu no mar congelado), Tamara revela que ser assediada sexual, moral, profissional e psicologicamente foi uma realidade ao longo do processo.
Fui o tempo todo infantilizada e assediada por potenciais parceiros técnicos que usavam o afeto de chantagem. Ouvi de funcionários: ‘Só salário não é suficiente para mim’, ‘É muito difícil trabalhar com você e ficar te olhando o dia inteiro’, ‘Só vou trabalhar com você se você transar comigo’. De outros ouvi: ‘Para mim é uma derrota trabalhar para você, uma menininha’. Dificilmente a gente é levada a sério
O processo foi longo e extenuante, muito além do que já seria natural para uma viagem complexa e audaciosa como essa. Um desperdício de energia que nós, mulheres, conhecemos muito bem. De toda forma, Tamara consegue se divertir, se aprimorar e nos fazer sorrir com seus pensamentos. “Nós, mulheres, somos expostas a um desencorajamento sistemático inclusive de pessoas queridas que vão dizer: ‘Não vá porque você não vai conseguir, porque você não tem força suficiente, porque você não vai ser racional suficiente, porque as mulheres são muito emocionais, porque as mulheres são fracas’. ‘Olha o seu braço: é muito fino! O inverno vai exigir de você muito mais do que isso. Vai faltar homem no seu barco. Um caçador pode atravessar o mar congelado e vir aqui te estuprar’. Afinal de contas, para estar segura de um homem, você precisa também de um homem que te defenda. Então você pensa: ‘Mas qual é a chance que eu tenho nesse mundo se nem lá no meio do gelo eu estou segura?’”.
Sobre as críticas de que só fez a viagem porque é uma riquinha entediada que não sabe o que quer da vida, Tamara diz que compreende as falas, mas nos convida a refletir. “Minha profissão é navegar. Sou uma atleta. E o trabalho de uma atleta é esse: fazer coisas, tentar superar a si mesma para superar algo que vai além do imaginário do que a gente considera que um humano é capaz de fazer dentro de uma determinada área. É expandir os limites não só físicos, as referências das capacidades humanas, mas expandir o imaginável também. Se nem eu, que tenho o privilégio que poucas pessoas têm no Brasil que é o de sonhar, não acreditar, não resistir, quem vai?”
Além da reflexão sobre privilégios, a velejadora também nos provoca a pensar sobre as contradições, machismos e preconceitos que envolvem tentativas constantes de descredenciar as conquistas de uma mulher. “É tudo sempre no código da virilidade: o homem forte, corajoso, desapegado, ousado, ambicioso, racional, planejado. Aí vem uma mulher brasileira, de país tropical, jovem, que diz que está se preparando muito, que admite ter medo e ser menos experiente do que gostaria, mas que vai lá e faz a viagem. Aí você pensa: ‘Calma: se não era preciso ser homem, nem extremamente forte, nem corajoso, nem doentemente obstinado, então por que eu não posso também?’. Eu fiz o meu trabalho. Ser criticada pelos meus privilégios é a prova de que o feito de uma mulher modifica realmente o imaginário das pessoas sobre o que elas mesmas são capazes de fazer. Acho que é um bom exercício, mas temos que mudar muitos mais!”
Para resistir às exigências físicas, mentais, emocionais, nutricionais e técnicas da viagem, Tamara contou com a ajuda de uma equipe multidisciplinar. A preparação mental foi feita com a psicóloga Nair Pontes e incluiu sessões de reprocessamento de traumas, interpretação de sonhos, terapia de fala, técnicas de respiração, exercícios de autorregulação. A preparação física teve treinos de corrida, remo ergômetro (o preferido dela) e musculação. O kit de primeiros socorros foi formulado pelo Dr. Fabio Tozzi, médico e navegador polar que ensinou a atleta a realizar procedimentos que poderiam ser necessários, como por exemplo costurar a própria pele. E a nutricionista Isadora Bertoli foi responsável pelo cardápio. Os estoques de comida incluíram: grãos (arroz, feijão, grão de bico, lentilha), féculas (macarrão de trigo ou feijão, pão feito no barco, tapioca), sementes (girassol, papoula, chia, abóbora), conservas de legumes e frutas desidratadas (uva, damasco, ameixa, tâmara). Para evitar a produção de lixo, Tamara pescou. Quando o mar congelou, as raposas roubavam os peixes e a alternativa era comer o que tinha disponível no barco.
“A parte mais difícil foi a preparação, mas foi boa, tanto que correu tudo bem no inverno. Mentalmente treinei como sair de ciclos de pensamentos negativos que poderiam ser frequentes. Os treinos físicos foram muito importantes para evitar lesões. Eu sabia que ia ter que puxar ferro, minha âncora era pesada, a corrente comprida, e eu precisaria de uma boa postura para poder fazer os exercícios necessários sem me machucar. Também tinham as decisões meteorológicas, as estatísticas, a logística toda”. Segundo a atleta, o trabalho em equipe e a confiança de todos foi fundamental para ela não desistir diante de tantas dificuldades. “Embora muitas vezes eu não estivesse acreditando que seria possível colocar o plano em prática, eu pensava: ‘Será que as coisas estão tão ruins assim? As pessoas que estão comigo são inteligentes, dedicadas, sensíveis. Elas não estão ajudando porque estão com pena ou porque são malucas: é porque acreditam’”.
Todo o planejamento e todos os custos da viagem foram bancados por ela, sem ajuda da família, com patrocínios que ela conseguiu e com palestras que ela realizou. Aliás, Tamara Klink diz amar a possibilidade de palestrar e conversar com pessoas e equipes que vivem realidades e contextos completamente diferentes dos dela.
Falamos sobre a fome que as pessoas têm de sonhar, de encontrar um propósito... As pessoas que têm mais dinheiro sentem que o dinheiro não é o que fará suas vidas terem mais sentido. Não é o dinheiro, não é a fama, não é o sucesso. Independentemente do lugar em que estão ou do que fazem da vida, sinto que as pessoas estão sempre querendo algo que ainda não têm. E é justamente isso que vai movimentando as pessoas. Para um vendedor é vender mais. Para um executivo é subir um cargo. Para um CEO é ter mais responsabilidade, fazer crescer a empresa. Para um cientista é descobrir algo novo, conquistar um novo financiamento. Para um atleta é melhorar seu tempo, é conseguir um patrocinador. Parece que é infinito: para todo mundo é insuficiente. Algumas pessoas estão na pressa da urgência do agora, porque não têm nem o mínimo. Outras que têm muito mais do que o máximo ainda estão insatisfeitas.
Quando a gente traz o conceito de alto rendimento tirando o foco exclusivo no esporte e associando à vida cotidiana, Tamara é categórica: “Alto rendimento tem a ver com o nosso desejo, com qual medalha a gente quer ganhar. Pensar nisso pode ser doloroso, mas é necessário para a gente saber o que precisa fazer para chegar lá. Sinto que a medalha é só uma coisa e as coisas não fazem a gente feliz. Suspeito que o que faz as pessoas acumularem objetos é a possibilidade de alcançar algo, mas essa não é uma reposta em si. É um engano. Objetos são utensílios para alguma coisa, mas não são a coisa final. A medalha talvez sirva para lembrar, para ser lembrada, para provar, para ter respeito, para ser amada, para se sentir importante. Mas a medalha em si não serve: o que serve é o que a gente quer com aquilo, porque se a gente não quer a medalha que está recebendo, de que adianta?”.
E para quem não consegue entender por que uma mulher de 25 anos, privilegiada, formada em arquitetura, com família estruturada, escolhe ser atleta, escolhe viver no mar congelado muito longe de casa, no escuro, no frio, sozinha, com comunicação limitada a e-mails curtos com a equipe técnica e telefone de satélite para emergências, sem acesso às redes sociais, correndo riscos, passando perrengues e se privando de pessoas, coisas e confortos, a jovem dá uma direção.
Eu queria experimentar viver só, experimentar viver com auroras boreais, conhecer constelações de estrelas, entender o que é não ter nome, gênero, cara. No tempo em que estivesse só, queria saber do que era capaz sem ninguém me dizendo o que eu poderia ou não fazer. Queria estar e fazer parte das histórias dos livros que imaginei na cabeça. Queria ter sensações, dimensões e sentidos com o meu próprio corpo. Era isso que eu queria e foi isso que eu fiz. O que eu gosto de fazer com meus relatos é dar às pessoas pelo menos o direito de imaginar, não exatamente o que eu fiz, mas o direito de desejar qualquer coisa, o que elas quiserem.