Esqueça a festa africana no pódio: São Silvestre é do Brasil
Responda rápido: qual tradição é maior? No último dia do ano ter a São Silvestre ou a África dominar as duas modalidades da mais tradicional prova de corrida de rua do Brasil? Em 2014 não foi diferente e o país africano deixou os brasileiros para trás mais uma vez. Daí surge o mito de que a São Silvestre faz a “festa do continente africano”. Será? Não, definitivamente não.
Apesar de neste ano, mais uma vez, os vencedores serem de longe do Brasil - a etíope Ymer Wude Ayalew venceu no feminino e Dawit Fikadu Admasu, também da África, no masculino - houve festa e hino nacional para o brasileiro Giovani dos Santos, único brasileiro nos pódios. Mas a verdadeira festa está entre os populares.
A charmosa corrida que começa na Avenida Paulista e termina no próprio coração financeiro da cidade é do brasileiro. E todo cidadão nacional, de certa forma, sente-se representado no evento. Para você que nunca viu a prova de perto, a Avenida Paulista fica tomada quase em toda sua extensão por corredores que fazem loucuras para realizarem o sonho de simplesmente participar da festa popular.
O clima começa ainda antes de ver a luz do sol. Como a região é abastecida por uma rede de metrô, o transporte público de São Paulo vive uma hora do rush "diferente": são milhares de corredores com seus shortinhos e camisetas da prova dividindo espaço com - poucos - engravatados que se deslocavam para o dia de trabalho mais incomum do ano na Paulista. A fila de espera por um veículo na Linha 2 - Verde chegava a até 3 trens em plena véspera de Ano Novo.
A largada é conjunta para a maioria do “povão”, pouco antes das 9h. Mas não é aquela largada que você está acostumado a ver na televisão: a quantidade de pessoas é tamanha que a reportagem, andando a passos – até que - rápidos na calçada, consegue naturalmente ser mais veloz do que os corredores amadores, que se alongavam como profissionais pouco antes da largada.
Tradicionalmente, a “corrida” para grande parte do público só começa mesmo depois da descida do Pacaembu, mais de 1 km após a bandeirada inicial. Até lá, quem mais trabalha e “corre” com a voz é o locutor oficial. Ele é o responsável por fazer a festa dos maratonistas sem rosto – claro, muitos deles vão fantasiados – ao citar cada cidade que ele vê com uma faixa. Sim, cada uma das centenas de faixas.
A reportagem tentou acompanhar a quantidade de municípios citados pelo narrador, mas é impossível. “Piracicaba, grande Piracicaba”. “Ribeirão Preto, terra da USP”. “Sertãozinho”. “Itaquera, zona leste é nóis”. Belford Roxo, Campina Grande, Cerquilho, Bragança Paulista, Salvador. A lista é gigante e a São Silvestre é o momento em que o orgulho pela pequena – ou não – cidade é exaltada pelo morador para o Brasil inteiro ver ao vivo.
Há até quem cometa loucuras com esse pensamento. “Vim de Iguatu, no Ceará, com o dinheiro contado. Sobrou só R$ 1 depois que eu comprei a passagem para São Paulo. Foram 2600 km de viagem”, comentou ao Terra um corredor, chamado Francisco. A roupa dele? Claro, uma fantasia de cangaceiro. A São Silvestre podia ser mais brasileira que isso?
Claro que é preocupante o jejum brasileiro sem conquistas na São Silvestre – no masculino o último foi Marilson Gomes dos Santos, em 2010, enquanto no feminino Lucélia Peres levou em 2006. Neste ano, a melhor brasileira foi Joziane Cardozo, em oitavo, e o principal atleta masculino nacional foi Giovanni dos Santos,em quinto. Não estranhe: os africanos também dominam as principais provas de rua do mundo, seja em Nova York, Boston ou Berlim. Mas não duvide. A São Silvestre faz a festa do brasileiro. De forma até muito mais democrática e acessível do que a Copa do Mundo de 2014.