1987: A passagem que a Alfa Romeo não quer lembrar na F1
A Alfa Romeo se despede mais uma vez da F1 ao final deste ano, mas tem uma passagem que deixou a Ligier quase de fora do campeonato de 1987
Este ano, a Alfa Romeo completou mais uma passagem pela F1. Desta vez, a passagem que foi de 2018 a 2023 foi somente como patrocinadora principal. Anteriormente, esteve como equipe em 1950 e 1951 e depois de 1979 a 1985. Mas não podemos esquecer da participação como fornecedora de motores...
Oficialmente, a Casa de Arese esteve entre 1970 e 1971, quando forneceu um V8 para a McLaren e para a March (ambos pilotados por Andrea de Adamich) e depois voltou em 1976, fornecendo em regime de exclusividade para a Brabham, o que aconteceu até 1979. Além de atender seu programa, a marca italiana cedeu motores oficialmente para a Osella até 1987 (e pediu para tirar sua marca em 1988).
Mas tem uma passagem que a Alfa Romeo não faz a mínima questão de lembrar e que deixou a Ligier em maus lençóis para a temporada 1987...
1986 foi um ano em que a Ligier teve uma breve recuperação. Embora tenha tido o choque do acidente de Jacques Lafitte em Brands Hatch, a equipe francesa ficou em 5º lugar no Campeonato de Construtores e voltou a aparecer no pódio após 4 temporadas. Parecia que os bons tempos estavam de volta: o time tinha bom apoio financeiro (os francos da Gitanes e várias estatais, graças à ligação de Guy Ligier com François Mitterrand) e um pacote técnico bem resolvido.
Só que havia um problema: a Ligier se apoiava no fornecimento dos motores Renault, ajudado pela ligação governamental. Só que a montadora anunciou que se retiraria da F1 no final de 1986, o que os deixaria sem motor. Mas um bilhete premiado apareceu para os franceses: a Alfa Romeo.
Os italianos tinham acabado sua ligação com a Euroracing em 1985 e tinham um acordo de fornecimento dos velhos V8 com a Osella. Mas tinham planos de seguir: estava em curso de um novo motor turbo e olhava com atenção para as novas regras da F1 que previam a volta dos aspirados a partir de 1989.
Rapidamente, a ligação foi estabelecida e o melhor dos mundos aconteceu: a Ligier anunciou à altura do GP da Grã-Bretanha que fechou um acordo de exclusividade com a Alfa Romeo de 3 anos, começando em 1987 e previa até um V10 aspirado para o novo regulamento técnico que entraria em vigor a partir de 1989. E sem custo.
O que mais poderia dar certo? Ter apoio de uma montadora com uma tradição de competição e sem custo?
Só que a Alfa Romeo naquela época estava uma verdadeira barca furada: àquela época, a montadora era estatal, tinha uma linha de produtos interessante, mas cheios de problemas e um festival de prejuízos. Um ajuste estava em curso (que motivou o fim da equipe de F1) e a empresa estava na lista de privatizações do governo italiano, dentro de programas voltados para adequação à União Europeia.
Mesmo neste cenário, a Alfa resolveu seguir com o seu projeto F1. Carlo Chitti havia ido embora e a Autodelta, divisão de competições, foi desfeita. Chitti era o nome por trás dos 12 cilindros e do V8 turbo que era usado desde 1983. Mas na redução das atividades, foi convidado a se retirar e foi criar a Motori Moderni (que brincou de fazer V6 usados pela Minardi e o famoso 12 cilindros boxer da Subaru).
Uma nova estrutura foi criada, a Alfa Corse, e Gianni Tonti, ex-responsável pela área técnica esportiva da Lancia, assumiu o comando a partir do 2º semestre de 1984 e começou a trabalhar no V8 corrente, mudando turbos e introduzindo injeção eletrônica para 1985. Mas um dos trabalhos que estava na mesa era um novo motor.
Ainda na época de Chitti, a Alfa trabalhava em um novo turbo, mas numa concepção totalmente diferente. Os italianos abandonaram os 8 cilindros em V e pensavam em adotar um 4 cilindros em linha, no mesmo modelo que a Hart e a BMW. O planejamento inicial era para que este modelo, batizado 415/85T (“4” vem do número de cilindros e o “15” da capacidade do motor, 1,5 litros), fosse ser usado em 1985. Mas a crise financeira da Alfa e a decisão de terceirizar a equipe de F1 a partir de 84, atrasou tudo.
As restrições de consumo e a introdução de uma válvula de controle da pressão de turbo levaram a equipe de Tonti a voltar suas atenções ao novo motor até por entender que o V8 não tinha mais para onde ir, mesmo com as modernizações feitas. Um dos motivos também foi a ventilada redução da capacidade de motores (1,2 litros ao invés dos 1,5 litros de então), que não veio.
Os trabalhos de pista foram conduzidos no fim de 1985 ainda com um Alfa Romeo 185T em Paul Ricard e no circuito de provas da marca em Balocco (Itália). Os trabalhos seguiram em 1986 e o time de Tonti optou por fazer um motor simples, com duas turbinas pequenas. Uma solução que o técnico havia usado com sucesso nos tempos de Lancia.
A Ligier começou seus trabalhos para pensar o JS29 cedo. Além de um motor novo, o time técnico francês tinha que partir para adaptar o carro aos pneus Good Year, já que a Pirelli deixaria a F1 no fim de 1986. O JS27 era um bom carro, mas por conta das mudanças vindas por parte do motor, mais mudanças teriam que ser feitas do que o inicialmente pensado. Após o acidente de Lafitte em Brands Hatch, uma série de reforços foi feito.
O JS29 (Guy Ligier não colocava número pares em seus modelos e o JS era em homenagem a Jo Schlesser, piloto francês morto durante o GP da França de 1968) foi construído pela Advanced Technologies na Inglaterra e foi apresentado em Paul Ricard em janeiro de 1987. O 415T da Alfa Romeo era 15kg mais leve do que o Renault V6, o que permitiu fazer um carro mais baixo e mais estreito. Mas no geral, o conjunto francês pesou um pouco mais do que seu antecessor.
Os primeiros testes não foram animadores: o chassi tinha problemas de torção excessiva, os freios falhavam e os motores Alfa davam inúmeros problemas. Arnoux teve uma batida séria em Jerez e o motor não entregava toda a potência esperada, pois não conseguiram achar o acerto para o uso da nova válvula reguladora de pressão de turbo. Sem contar os inúmeros radiadores e turbos quebrados...
Neste tempo, Didier Pironi havia sido cogitado para pilotar, bem como Jacques Lafitte voltar. Porém, por conta dos laços com a Itália, foi trazido Piercarlo Ghinzani, que encarava como sua grande chance na F1 após sofrer anos com a Osella e ter tido uma série de problemas na Toleman. Ghinzani testou o carro pela primeira vez em Monza e fez tempos pouco competitivos.
O início da temporada se aproximava e os sinais eram preocupantes. Mas um fato acontecido no final de 1986 foi determinante para que o casamento Ligier/Alfa Romeo fosse para o vinagre...
A desculpa para a Alfa Romeo sair
Lembram-se que a Alfa Romeo estava na lista de privatizações do governo italiano? Em 1986, negociações foram iniciadas com a Ford e estava tudo muito bem encaminhado. Os americanos colocariam US$ 4 bilhões (valores atuais) entre dinheiro, assunção de dívidas e investimentos até 1994, levantando a produção para 400 mil carros/ano, sendo 50 mil destes com a marca Ford. Só que o orgulho italiano falou mais alto e a Fiat fez uma proposta em cima do prazo limite e levou o pacote.
Com a Fiat comprando a Alfa Romeo, a parte esportiva foi reorganizada: a Lancia ficava com o Rali e a Ferrari com a F1. A continuidade do projeto F1 pela Alfa estava em jogo e a ordem que veio de Turim: a Alfa Romeo deveria buscar terminar com a sua aventura.
Mas a temporada já estava para começar, o que fazer? O motor dava problema demais, mas não era justificativa. Até durante um teste em Imola foi chamado um técnico da Garrett, fornecedora dos turbos, para analisar as quebras e foi dito que o problema não era das turbinas...Algumas mudanças foram feitas, mas não da maneira que se esperava. Aí, veio a desculpa que os italianos queriam para sair...
Em entrevista à TV italiana, em 26 de março, após testes em Imola, René Arnoux simplesmente esculhambou os motores da Alfa Romeo, falando que era inadmissível que um motor quebrasse tanto e colocava em dúvida a qualidade dos produtos da marca.
Antes que se falasse Pizza e o assunto se espalhasse na imprensa, a Ligier chegou a soltar na manhã seguinte uma declaração dizendo que não endossava as palavras de Arnoux. Mas a Alfa Romeo liberou um comunicado e encaminhou um fax à Ligier comunicando o rompimento do contrato, alegando quebra. Isso deixou Guy Ligier louco: duas semanas antes da temporada começar, se via sem motor.
Os franceses tentaram contato com a Alfa, sem sucesso. Inclusive tentou se reportar diretamente a Gianni Agnelli, todo poderoso da Fiat, para demovê-lo da ideia. Tudo sem sucesso.
Em um momento de desespero, Ligier chegou a ligar para a Renault para verificar a possibilidade de usar os V6, mas a montadora negou, alegando que não tinha pessoal e que não havia tempo hábil para adaptar os motores às novas regras.
Não tendo como ir para o Brasil, primeira prova da temporada, a Ligier escreveu à FISA (então braço esportivo da FIA) e FOCA (Associação dos Construtores) alegando “força maior” para não participar da corrida em Jacarepaguá e não ser multada. Em paralelo, ameaçou os italianos com uma ação judicial.
Para evitar a justiça, a Alfa Romeo fez uma proposta: ela cederia 6 motores e alguns técnicos por três provas até que a Ligier encontrasse outro fornecedor, desde que os franceses abrissem mão de ação judicial. Não houve acordo e a Ligier abriu mão de correr de compensação.
Desta forma, a Alfa Romeo acabou focando em Turismo e botou o V10 pensado para a F1 em um 164 na então PROCAR (campeonato que não aconteceu), além de usar o V8 turbo na Indy. Eles seguiram fornecendo o velho V8 para a Osella em 1987, mas pediram que o nome da marca fosse retirado dos motores em 1988 para não haver mais nenhuma vinculação.
A Ligier não foi ao Brasil e após avaliar soluções como a Motori Moderni e os Ford Cosworth, conseguiu uma enésima ajuda do governo francês e fechou um acordo com a Megatron, empresa criada pela financeira USF&G, patrocinadora da Arrows, para gerir os motores BMW, já que os alemães saíram da categoria.
A escolha por este motor veio do fato de ter a mesma arquitetura dos Alfa Romeo. Mas obrigou a uma mudança drástica na aerodinâmica, reforço de suspensões e mudança de instalações. O JS29 ganha uma versão B, com mais arrasto, mais pesado e todo engatilhado. O melhor momento foi o 6º lugar que René Arnoux conseguiu na Bélgica, obtendo o único ponto do ano. Fora isso, foi um ano com festival de curtos-circuitos, radiadores furados e consumo excessivo...