Retrospectiva 2022: Ferrari vive roteiro de 'Mulher Nota Mil', fracassa e desmorona
Se alguém oferecesse o resultado final da temporada 2022 para a Ferrari, os italianos provavelmente aceitariam. Mas a história real deixou um sabor muito mais amargo
A história já é conhecida. Após dois anos muito difíceis, com direito ao pior campeonato dos últimos 40 anos em 2020, a Ferrari fez o que imaginava na chegada da nova geração de carros da Fórmula 1, em 2022: voltou a vencer e desafiar as rivais que vinham se impondo nos últimos tempos. Terminou na frente da Mercedes e chegou a importunar a Red Bull. Pode até ser que fosse esse o desejo lá em janeiro, mas fato é que a história é viva: a maneira como a história foi contada deixou chagas e terminou amarga.
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Há diferentes pontos para serem misturados: a preparação do carro e a maneira como a temporada foi conduzida. Tomar qualquer uma delas como definitivas e deixar a outra de lado é fazer análises furadas, capengas por natureza e sem o contexto necessário. A preparação seguiu o caminho preciso para o qual a Ferrari se preparou. Usou mais o túnel de vento que as rivais, trabalhou por quase um ano exclusivamente no que poderia oferecer em 2022. Quando os testes chegaram, estava na cara que a Ferrari tinha um dos melhores carros do grid. E venceu duas das primeiras três corridas do ano. Ainda que em ambas as provas, em Bahrein e Austrália, Max Verstappen tenha sofrido com problemas de confiabilidade, era mesmo a Ferrari quem tinha melhor desempenho e estava na frente.
Só que, a partir do momento em que o carro está nascido e o projeto original de cada equipe deixa de ser segredo, o trabalho é também misturar o que há de melhor no restante do grid, no que todas as equipes conseguiram pensar em engenharia e soluções. Aí, o carro original passa ser apenas um receptáculo. Um ponto de partida para o qual o sucesso tem de ser construído.
Foi exatamente neste ponto que a Ferrari parecia costurar história muito parecida à de Gary Wallace e Wyatt Donnelly, personagens de Anthony Michael Hall e Ilan Mitchell-Smith no filme 'Mulher Nota Mil (1985)'. Na história do mago dos filmes de 'coming of age', John Hughes, dois adolescentes em maus bocados e pouco traquejo social criam uma máquina, uma mulher virtual, belíssima para tentar amealhar respeito no colégio. Só que não sabem o que fazer com sua criação depois disso.
É o caso ferrarista. Com um grande carro, tinha de se manter competitiva frente às rivais. Não conseguiu. Incapaz de acompanhar a Red Bull, ficou para trás de maneira vexatória e viu a Mercedes, que estava retumbantemente atrás, recuperar-se e terminar o ano ao menos em pé de igualdade. É inaceitável que a Ferrari tenha tudo tanto tempo para se preparar para esta situação e, chegada a ela, tenha reagido de maneira tão inepta.
Mas o desenvolvimento manco é somente parte do problema. Quando a Ferrari finalmente se viu atrás da Red Bull de maneira definitiva na qualidade do carro, já estava perdida no campeonato. Isso porque as decisões ruins, os problemas de confiabilidade e a pouca habilidade em agir partindo dos primeiros lugares deixou cristalino um grave problema: a Ferrari não sabe ganhar. Com o grupo de tomada de decisões tão inexperiente em situações assim, a equipe italiana parecia se desesperar quando confrontada com situações-chave. Negou fogo, pois.
Após cinco corridas e com um campeonato apertado, a F1 chegou à Europa. Nas cinco corridas seguintes, um filme pastelão. O motor de Charles Leclerc, forte na briga pelo campeonato, estourou enquanto liderava na Espanha e no Azerbaijão; a estratégia tirou Charles da liderança para o quatro posto em Mônaco e na Inglaterra; no Canadá, após os motores estourados anteriormente, Leclerc foi punido por trocar o propulsor e largou no fim do grid. É verdade que o monegasco venceria a corrida seguinte, na Áustria, mas cometeria um erro absurdo na França enquanto a equipe se enrolaria novamente na Hungria. Uma sequência que enterrou qualquer chance.
E situações assim, que se manifestam de maneira endêmica e ao longo de meses a fio, evidentemente provocam rachaduras. As da Ferrari foram sendo suprimida pelo tempo, mas não desapareceram. Na Inglaterra, por exemplo, a Ferrari tomou a decisão mais controversa da temporada: conscientemente escolheu favorecer Carlos Sainz contra o então líder Leclerc. O espanhol venceu, o monegasco perdeu e ainda teve de lidar com o chefe Mattia Binotto. Num capítulo enérgico do ano instável, Binotto saiu correndo do pit-wall ao fim da corrida e foi até Leclerc, chegando com o dedo no rosto para impedir Charles de falar.
A relação azedou a partir da Inglaterra. A pontuação do campeonato disparou no caminho de Verstappen, mas foi mais do que isso. No fim do ano, o jornal francês L'Équipe publicou que os dois, Binotto e Leclerc, não se falavam desde então. Nenhum dos dois jamais negou. A decisão fez azedar a relação entre chefe e principal piloto, mas também entre chefe e presidente. John Elkann retirou a sustentação de bastidores por Binotto, mal se manifestou no resto do ano e deixou render a expectativa da demissão de Mattia. Ao fim do campeonato, concretizada.
Nem mesmo Binotto aparentava forças para lutar contra o destino terminal. "Com o pesar que isso acarreta, decidi concluir minha colaboração com a Ferrari. Saio de uma empresa que amo, da qual faço parte há 28 anos, com a serenidade que advém da convicção de que fiz todos os esforços para atingir os objetivos traçados. Penso que é certo dar este passo neste momento tão difícil quanto foi, para mim, esta decisão. Gostaria de agradecer a todas as pessoas da gestão esportiva, que dividiram comigo este percurso, feito de dificuldades, mas também de muita satisfação"
A desorganização é tamanha, porém, que quase duas semanas após a demissão, Binotto representou a Ferrari oficialmente na reunião do Conselho Mundial da FIA, realizada em Bolonha, na Itália, pertinho da sede de Maranello. O carro e motor de 2023 estão basicamente prontos, com o selo e estampa da gestão Binotto. O próximo chefe terá de lidar com isso.
Aliás, dois meses antes dos testes coletivos de pré-temporada, a Ferrari não tem chefe. Há quem diga que Frédéric Vasseur, ainda chefe da Alfa Romeo, é o favorito, mas nem isso está confirmado. Laurent Mekies, diretor-esportivo, fica ou sai? Andreas Seidl, chefe da McLaren, também é considerado candidato que agrada à presidência, bem como o ex-piloto e atual chefão do DTM, Gerhard Berger. Sem norte, sem chance.
O que deveria ter sido um ano de recuperação do moral terminou com desmonte, ainda que os objetivos mais reais vislumbrados em janeiro tenham sido realizados. O ano era para ser de reafirmação, mas terminou criando dúvidas. Qual o caminho? Quem deve comandar? Sainz tem estatura para a Ferrari? Leclerc é o cara, tem postura de líder? Charles já avisou que não vai mudar.
"É o jeito que trabalho. Eu admito quando erro. Eu não ligo porque todo mundo erra. O que é errado é quando você tenta esconder seus erros, porque você não cresce deles", afirmou quando questionado sobre a postura pela revista alemã Auto Motor und Sport. "Um erro pode ser uma coisa única. Isso é normal para mim, sempre admiti meus erros. Não acho que é ruim. Se o time errar, eu os aviso também. Somos honestos com o outro, e com esta forma de trabalho, vamos crescer juntos. Não vou mudar minha abordagem. Não sou o piloto que vai detonar em público. Mas em reuniões internas, eu empurro o time, é meu trabalho. Quando eu erro, eu falo. Se o time erra, precisa estar na mesa. Eu tenho de ter permissão de falar o que penso", apontou.
Nada se sabe, na Ferrari. Tudo se duvida. Nessa toada, 2023 é uma interrogação imensa.
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