Gil de Ferran: Heróis não morrem. Só mudam de categoria
Aos 56 anos, durante testes em circuito na Flórida, morre Gil de Ferran, um dos melhores pilotos brasileiros dos ultimos 40 anos
Gil de Ferran nasceu na França, mas se mudou para o Brasil aos 4 anos, onde começou a competir em kart e depois na Fórmula Ford. Seguiu para a Grã-Bretanha e começou na F3, se destacando com resultados bons. Tentou também a F1, mas não conseguiu se classificar, e decidiu ir para a IRL Indy, pelo qual se tornou bicampeão e ganhou uma Indy 500.
É daquele tipo de notícia que, quando nos chega, não queremos acreditar. Principalmente quando um dos nossos heróis se vai. Mesmo quando vamos ficando mais velhos, nós temos aqueles que não nos esquecemos. Um deles é Gil de Ferran, que nos deixou nesta sexta (29).
Nascido na França, mas vindo para o Brasil aos 4 anos por conta do trabalho do pai, o engenheiro Luc de Ferran, um dos grandes nomes da indústria automotiva brasileira, Gil de Ferran desde cedo foi se enfronhando com os carros. Foi pelo caminho natural dos pilotos e iniciou no kart.
Após bons resultados, migrou para os carros e começou na Fórmula Ford em 1986. Embora muitos achassem que ele tivesse alguma proteção por conta do pai, que trabalhava na Engenharia da fábrica (muito pelo contrário), Gil mostrou que era talentoso e venceu o Campeonato Brasileiro em 1987. E deixou o curso de engenharia mecânica (ele seguia os passos do pai)
Como era o habitual para quem queria chegar na F1, Gil foi para a Grã-Bretanha e começou a andar também de Fórmula Ford e foi um dos primeiros pilotos da Paul Stewart Racing (filho de Jackie Stewart) na Fórmula Opel. Em 1991, faz o salto para a F3 inglesa, segurando a barra de desenvolver o chassi Reynard no meio dos Ralt, ficou em 3º lugar no campeonato, atrás de David Coulthard e Rubens Barrichello.
No ano seguinte, se mantem na categoria, mas volta para a Paul Stewart Racing, tendo André Ribeiro como companheiro de equipe. Gil vence 7 das 16 provas e ganha o campeonato. Como prêmio, teve a oportunidade de pilotar a Williams FW14B campeã daquele ano em uma chuvosa Silverstone em 1992, no dia de ser aniversário (25/11).
Rápido e técnico, Gil caiu nas graças da família Stewart e seguiu com o time para a F3000 em 1993. Em um ano um pouco acidentado, venceu uma prova em Silverstone e chegou em 4º no campeonato. Mas seu desempenho chamou a atenção da F1. E o brasileiro foi convocado para um teste pela Footwork no Estoril. Em dois dias, teve chance se pilotar o FA14 do time. Só que no segundo dia, quando iria usar pneus novos e mais à vontade com o carro, teve um acidente no motorhome (bateu a cabeça) e não pode mais andar...
Em 1994, seguiu na F3000 e brigou pelo campeonato até o final, vencendo duas etapas (Pau e Pergusa). Só que no final, o motor apresentou problemas e terminou em 3º (Olivier Panis ganhou o campeonato). Mas o passo seguinte, era a F1.
Tudo caminhava a favor: Gil tinha a chancela de Jackie Stewart e algum dinheiro brasileiro. Só que as pedidas das equipes assustavam. Gil negociou com a Tyrrell, a Footwork e quase foi parar na Forti Corse. Mas faltavam detalhes...
Porta da F1 fechada. Azar da F1
Mais um ano na F3000 estava fora de cogitação. Mas a possibilidade Indy apareceu no horizonte. Com o apoio da Phillip Morris, Gil de Ferran encarou o desafio de começar uma nova carreira. Praticamente do zero, Gil foi pilotar o Reynard da equipe Hall, contando com o icônico patrocínio da Pennzoil. Os resultados não foram tão bons (14º lugar), mas de total desconhecido entre os americanos (tanto que Gil mandou fazer uns adesivos “Who’s the hell is Gil de Ferran?”, que era a pergunta mais feita pelo paddock após os treinos da primeira prova do ano: quem diabos é Gil de Ferran?), passou a ser respeitado.
E ele tratou de mostrar quem era. No segundo ano, Gil foi o 6º colocado, andando muito na frente, mas sofrendo com problemas de estratégia e confiabilidade. Por este motivo, em 1997, Gil se transferiu para a Walker Racing. Mesmo sem vencer prova alguma, mas com grande constância, foi vice-campeão.
Mas a Walker não conseguiu manter o ritmo nos anos seguintes e Gil de Ferran entrou no radar do capitão Roger Penske, que o chamou para o time em 2000. Foi uma dupla matadora, com Gil conseguindo o bicampeonato. Em 2000, Gil marcou a volta mais rápida em circuito fechado em Fontana, marcando 241.428 mph (388.541 km/h).
Em 2001, a Penske colocou carro para correr na IRL, a categoria criada em 1995 com a cisão da CART e abrangendo a Indy 500.Nesta edição, Gil chegou em 2º lugar. No ano seguinte, a Penske se mudaria definitivamente para a IRL, com uma dupla totalmente brasileira (Gil de Ferran e Helio Castroneves). Foi 3º lugar em 2002 e 2º lugar em 2003, vencendo a Indy 500 nesta oportunidade. No fim deste ano, deixa a CART.
Gil de Ferran, o dirigente
Após um ano sabático, Gil de Ferran foi anunciado como Diretor Esportivo da BAR na F1 em 2005. Foi um dos responsáveis pela vinda de Rubens Barrichello para a equipe em 2006 e a transição do comando do time à Honda. Mas se considerando “desnecessário”, saiu do posto em meados de 2007.
Como o “bichinho da velocidade” ainda mordia, Gil anunciou a volta às pistas no campeonato norte-americano de Endurance com um LMP2 oficial da Acura em um time próprio, a De Ferran Motorsports. Em 2009, o time foi campeão da classe LMP1, com o “dono” sendo vice-campeão.
No final da temporada, passa a ser somente dirigente e expande as atividades para a Indycar, se fundindo à Luczo Dragon, fundada por Jay Penske, filho de Roger. Nascia a De Ferran Dragon Racing, com Raphael Mattos ao volante. Embora o ano não tenha sido muito produtivo, Gil foi indicado pelos chefes de equipe a representá-los no desenvolvimento do novo carro que começaria a ser usado em 2012. O time fechou as portas em 2011 por falta de dinheiro.
Gil seguiu envolvido com automobilismo, mas chamou a atenção quando voltou à F1 em 2018 para ser Diretor Esportivo da McLaren. Àquela altura, Zak Brown havia assumido o time e tinha grandes ideias. Uma delas era voltar à Indy. Um ano antes, Gil de Ferran foi o “tutor” de Fernando Alonso quando este tentou correr as 500 Milhas. E assumiu o papel de comandante do projeto do time para as 500 Milhas de 2019, mas sem sucesso, quando Alonso não se classificou para a prova. Em 2021, Gil deixou o posto, indo ajudar o desenvolvimento da ExtremE, categoria off-road de carros elétricos.
Neste ano, Gil foi anunciado novamente como consultor da McLaren. O objetivo era dinamizar as atividades da equipe entre as mais diversas categorias e Gil seria uma espécie de “Supervisor”. As expectativas para 2024 eram animadoras e Gil fez questão de dizer isso em Interlagos, no paddock do GP de São Paulo deste ano.
Mas ao fazer algumas voltas no circuito de The Concours Club na Flórida, se sentiu mal e parou. Porém, o coração não aguentou e o motor parou de funcionar, aos 56 anos.
Gil de Ferran deixa uma bela imagem como piloto e dirigente. Como poucos sabia aliar rapidez, tenacidade e conhecimento técnico. Uma das provas é que, em 2013, a revista britânica Autosport o indicou como um dos melhores 50 pilotos que não pilotaram na F1.
Que os deuses do automobilismo o recebam, Gil. E que nós saibamos manter viva a sua imagem entre os fãs. No autódromo da vida, os heróis jamais morrem. Somente mudam de categoria.