O doce charme dos azarões da Isotta Fraschini no FIA WEC
Estreante este ano no FIA WEC, a Isotta Fraschini está no fundo do pelotão, mas mostrou coração e simpatia em Interlagos
Muitas vezes, o termo “azarão” acaba por ser visto de forma pejorativa. Visto pela definição formal nos dicionários, é aquele que “tem poucas possibilidades de vencer uma disputa ou de dar certo em algum empreendimento; zebra, azar.” Na boa língua britânica, tem uma grafia que soa até mais imponente: underdog.
No caso do WEC, temos uma equipe entre os Hypercars que se enquadra nesta definição: a Isotta Fraschini.
A marca italiana fundada no início do século passado por Cesare Isotta e os irmãos Vicenzo, Antonio e Oreste Fraschini. Inicialmente, o objetivo era importar franceses Renault e ingleses Mors para a Itália. Em 1904, passaram a fazer seus próprios carros: no começo, montavam motores Aster (que também tinham autorização para trabalhar) nos Renault e Mors, fazendo versões próprias, se diferindo nos radiadores.
No ano seguinte, constroem seu primeiro carro e começam a tomar parte em várias competições. O primeiro destaque veio em 1907, com a Coppa Fiorio, onde alinharam com o Tipo D, um carro com um motor de 17,2 (!) litros e incríveis 100 cv. A partir daí, se consolidaram como marca de vanguarda, trazendo novidades como freios nas quatro rodas, motores com comandos de válvulas no cabeçote e ainda sendo o primeiro carro de série a ter 8 cilindros em linha, com o Tipo 8, de 1919.
A Isotta Fraschini criou uma reputação de fazer carros de luxo e de alta tecnologia. Seu crescimento foi puxado principalmente pelos milionários dos Estados Unidos dos 1920. Mas a Grande Depressão e a Segunda Guerra levaram a marca a deixar de produzir carros, ser incorporada por outra empresa e mudar seu foco para os setores ferroviário, marítimo e industrial.
Após algumas tentativas de ressuscitar a marca como fabricante de veículos nos anos 90, a divisão finalmente conseguiu seu intento em 2022, com a apresentação do Tipo 6C. Era um esportivo Hypercar e foi concebido para se enquadrar nas novas regras do FIA WEC na categoria LMH.
O projeto do carro ficou sob responsabilidade da experiente Michelotto, empresa de engenharia que atendeu a Ferrari por vários anos, inicialmente como autorizada e depois ajudando a desenvolver carros como o 308, a versão de competição da F40 e a 333 SP.
Para conceber o Tipo 6 Competizione, a Michelotto contou com o apoio da Williams Advanced Engineering (sim, a antiga subsidiária da equipe de F1) na aerodinâmica e com a alemã HWA (empresa com fortes ligações com a Mercedes, que operou carros no DTM e foi responsável pela entrada da marca na F-E). Para fazer a operação de pista, foi contratada a britânica Vector Sport, fundada em 2021, com experiência no WEC. E ainda contava com Claudio Berro, experiente dirigente de automobilismo, no comando esportivo (que ficou à frente do projeto até depois das 24 Horas de Le Mans deste ano).
Mesmo com todo este histórico e parcerias, os italianos foram à luta contra grandes conglomerados como BMW, Porsche, Ferrari, Renault (através da Alpine), Peugeot...uma luta pode até se dizer insana e desigual.
Após alguns atrasos, os testes de pista começaram em 2023 e até Pastor Maldonado foi contratado para ajudar no desenvolvimento e ser um dos pilotos. Quem comandou os trabalhos de testes foi o experiente Jean Karl Vernay.
Mas o convencional Tipo 6C teve alguns problemas e no final de 2023, na fase final de preparação para esta temporada, alegando “divergências e descumprimentos contratuais”, a Vector deixou o projeto, sendo substituída pela francesa Duqueine, time formado em 2014, mas com grande experiencia anterior em competições.
Para comandar o carro, Vernay foi mantido, mas a Isotta optou por trazer dois jovens pilotos: Carl Bennett (indicado pela A14 Management, agência de Fernando Alonso) e Antonio Serravale. Segundo Claudio Berro, o objetivo era tirar a pressão sobre o time ao escolher pilotos sem tanta experiência. Isso até motivou uma discussão nas redes sociais do time com o brasileiro Pipo Derani.
Logo no prólogo feito no Catar, viu-se que a vida da Isotta não seria fácil. O carro teve inúmeros problemas e mostrou falta de ritmo. Isso não ajudou nada a vida dos jovens pilotos, que ficaram no fim do pelotão.
E isso se repetiu nas corridas seguintes. Porém, vieram as 24 Horas de Le Mans e para a surpresa geral, a Isotta completou a prova, chegando à frente de tantos poderosos. Isso até motivou uma comemoração merecida nas redes pelos fãs.
Um mês depois, o circo do WEC desembarcava em Interlagos. Depois de 10 anos a categoria retornava ao Brasil e dava a oportunidade de o respeitável público conhecer de perto os carros. Isso inclui a imprensa especializada. Aqui, começa a odisseia...
Um dos objetivos era ir às equipes e tentar obter o máximo de informação. Afinal de contas, como é o meu caso como comentarista, qualquer dado obtido direto da fonte faz toda a diferença na qualidade da transmissão, seja de no aspecto técnico ou ajudar a entender a dinâmica de prova, por exemplo.
Desde a quinta, foi uma maratona em Interlagos juntos aos times, após vários contatos prévios mantidos. Na sexta, Milton Rubinho (amigo e companheiro de transmissão no Band Sports) tivemos a oportunidade de ir aos boxes da Lamborghini, Cadillac, conversar com o Diretor Técnico da Peugeot...era já cheio. Mas ele perguntou: e a Isotta?
Já no paddock, se notava a diferença: os italianos estavam no primeiro box de Interlagos, logo na entrada do pit lane, em um espaço que mal dava um carro. Na parte de trás, enquanto várias equipes tinham tapadeiras estruturadas, com marcas de patrocinadores e fotos...a Isotta tinha aerofólios, bicos, pneus e pallets de madeira espalhados. Um esquema um pouco mais relaxado, digamos assim.
Mandei mensagem para Andrea, que estava responsável pela parte de comunicação do time no fim de semana em Interlagos. Nos recebeu calorosamente e logo mostrou que a Isotta era outro espírito: ao saber do meu Milani, perguntou se falava italiano e respondi que não. Logo veio o retruque: “Se chama Milani e não fala italiano! Como assim?”
Entramos no espaço apertado e vimos o Tipo6C sob cavaletes, devidamente sendo trabalhado pelos mecânicos. Dava para notar que tinha soluções mais simples se comparado aos concorrentes mais abastados. Mas era funcional. Andrea vinha nos explicando algumas situações e quando fizemos perguntas mais técnicas, ele saiu correndo atrás dos boxes atrás de um engenheiro para nos atender...
Nosso anfitrião ainda nos explicou que o plano da Isotta é aprender ao máximo possível este ano e quer sim alinhar 2 carros no próximo ano. O objetivo é conseguir entender mais o carro até o final do ano para ter mais condições de tirar mais desempenho. Porém, uma das preocupações naquele momento era mudar a pintura do carro para o sábado...
Explicamos também que na transmissão nós adotamos a Isotta e que fazíamos uma série de brincadeiras com o time. Andrea riu e falou: “Ótimo! Traduza e mande pra mim!”.
Era uma outra abordagem. Talvez uma volta ao tempo quando não tínhamos tantas formalidades e menos tecnologia. O WEC se mostrou mais humano, porém a trupe da Isotta tinha uma aura mais amigável, daquela galera que se junta no fim de semana para fazer alguma coisa.
No sábado, encontrei novamente com Andrea, que mostrava a carroceria com pintura modificada, com mais fibra de carbono à mostra. “É o Batmóvel!”, dizia ele. Do box ao lado, estava a WRT, com os BMW de Augusto Farfus e Valentino Rossi. Tudo limpo e impecável.
Naquele momento da manhã, estava em preparação a visitação aos boxes para autógrafos junto aos pilotos. Estava com o amigo Gabriel Lima, louco por motos e queria estar com Rossi (como boa parte do publico também). Entramos na fila e o Andrea me chama: “Você vai entrar na fila do Rossi? Pode me arranjar uns autógrafos dele?”
Quebrei o galho do Andrea e dei o autógrafo que consegui.
Depois fui bater mais perna pelo autódromo, atendendo mais boxes, vendo mais soluções...e lá pelas tantas passo no box da Isotta e estão todos exasperados, tentando fechar uma solução. Pelo menos o time ficou “só” 1,6s atrás da pole e isso foi considerado como uma vitória por parte do time.
The #6hSaoPaulo's Qualifying session had been another important step for the #Tipo6LMH Competizione. It showed how much the #IsottaFraschini and #MichelottoEngineering personnel worked hard during the season.
Circuits are different, so to understand how much the #hypercar from… pic.twitter.com/IM9gULWMiC
— Isotta Fraschini Milano Fabbrica Automobili (@IFautomobili) July 13, 2024
No dia seguinte, ao preparar para a transmissão, antes da largada vejo que o Andrea estava quase em frente da nossa cabine. Foi levado pelo Milton, que havia o encontrado nos camarotes para acompanhar a prova como um spotter e indicou que, onde estávamos seria bem melhor. No que depois o italiano concordou e ficou boa parte da prova, fazendo várias imagens.
O fato é que a resenha foi ótima, várias coisas renderam várias risadas e acabou por conquistar a simpatia da equipe de transmissão. A Isotta até pode ser azarão, mas tem garra e mostra que aquele espírito garagista genuíno ainda tem espaço na competição de alto nível. Os azarões tem sim o seu charme e ajudam a lembrar que pode haver um lado menos sisudo na competição. Um viva à Isotta Fraschini!