Copa de 1958: má sorte do Canhão, nascimento do Rei e 'camisa religiosa'
Brasil superou fantasma do 'Maracanazzo' e conquistou o primeiro título mundial com grande exibição na Suécia
'Alô, amigo ouvinte! A bola está com o Canhão da Vila, o terceiro gol vem aí. Recebeu pela ponta esquerda, vai para cima do italiano, é falta em Pepe. O defensor da Inter de Milão mirou no tornozelo direito do atacante do Brasil. Pepe parece sem condições de jogo. Ele faz movimento que o pé virou com a dura entrada do adversário. É o último amistoso da Seleção antes do embarque para disputar a Copa do Mundo da Suécia. Será que Pepe vai se recuperar a tempo?'
É, não deu. A entrada do 'loirinho à la Paulo Nunes', como definiu o próprio Pepe, fez com que o atacante desembarcasse em seu primeiro mundial usando chinelo e com pé inchado. A recuperação veio só no quarto jogo, mas aí já era tarde. Zagallo já tinha caído nas graças do técnico Vicente Feola, que mudou o esquema tático da equipe e viu a Seleção responder muito bem às mudanças. Você pode estar se perguntando: 'Pô, não colocaram o Pepe para jogar nem cinco minutos?'. É que não existia substituição em 1958, a regra só começou a valer a partir da Copa de 1970.
A 'má sorte incrível' impediu que o 'maior artilheiro humano' do Santos, como ele mesmo se denomina, balançasse as redes na Suécia. "Pelé é um ET, ele é de saturno", brinca ele ao se comparar com o ex-companheiro de time. Mas a falta de gols no Mundial, não tira o orgulho de José Macia, nome de batismo do Canhão.
Em uma sala do apartamento em Santos, no litoral de São Paulo, ele guarda recortes de jornal, fotos, camisas, bolas, muitas medalhas e outros inúmeros troféus. "Tem algumas coisas aqui, mas as mais valiosas estão em banco, inclusive a medalha recebida em 1958", contou em entrevista exclusiva ao Terra para o especial O Caminho da 6ª estrela, que resgata a história de cada um dos cinco títulos do Brasil em Copas do Mundo a partir da memória dos próprios heróis.
Aos 87 anos, a memória de Pepe impressiona. Ele faz questão de mostrar cada cantinho do seu museu particular. Destaque para as fotos na juventude, quando ainda tinha uma vasta cabeleira, e para os registros ao lado dos companheiros de Seleção Brasileira. A camisa do Brasil autografada por Neymar tem um espaço especial: "Olha o que ele escreveu: 'Ao maior 11 da história do Santos'. Ele jogou com a 11 no Santos, o pai dele era meu fã."
O pé direito que tirou Pepe de ser campeão em campo é motivo de dor de cabeça no momento após uma leve torção. "Tô recebendo vocês como cheguei na Suécia, um pé com chinelo e outro com sapato", comentou ele aos risos, o mesmo 'sorriso dos inteligentes' que ele tirava dos companheiros na hora das fotos posadas.
"Na hora da foto oficial, os atacantes sempre ficavam na frente e tinham que abaixar, os defensores ficavam atrás. Eu costumava brincar: 'Vamos lá, pessoal, vamos fazer aquele sorriso de gente inteligente. Todo mundo começava a rir e já entrava em campo descontraído, espantava a tensão."
E foi nesse clima de descontração que o Brasil chegou para a disputa do Mundial de 1958. O fantasma do 'Maracanazzo' --como ficou conhecida a derrota do Brasil na final da Copa do Mundo de 1950 no Maracanã--- parecia ter ficado para trás. Segundo Pepe, a confiança era grande e foi crescendo com o passar dos jogos.
O grande responsável por deixar aquela Seleção ainda mais temida era um jovem de 17 anos ainda desconhecido: Edson Arantes do Nascimento, o Pelé. "Ele não tinha nem 18 anos e já assombrava o mundo. Suecos ficavam loucos com o Brasil, eles aplaudiam qualquer coisa que a gente fazia em campo."
Lenda sobre Pelé
A pesada preparação física teria motivado o jovem Pelé a pedir para abandonar a Seleção e voltar ao Brasil. Será que isso realmente aconteceu como dizem muitos recortes da época? "É claro que não, o Pelé tava louco para jogar. Ele já era uma revelação no Brasil. A surpresa foi tantos adversários marcando duro, chegando junto, e ele levando a melhor. Ele já tinha uma liderança. Começou ali e depois ele virou o melhor do mundo."
A estreia do Pelé aconteceu apenas na terceira rodada do Mundial da Suécia. O Brasil estava pressionado e precisava vencer a União Soviética. Feola não teve dúvidas e escalou o jovem camisa 10 que estava recém- recuperado de uma lesão. Foi na vitória por 2 a 0 que o mundo passou a conhecer o Rei do Futebol. Em quatro jogos na Copa, Pelé marcou seis vezes e voltou da Suécia com o prêmio de revelação do torneio.
Camisa azul
Você sabia que o primeiro título mundial do Brasil veio com a camisa azul? A camisa branca tinha sido ‘aposentada’ após a traumática derrota em casa, em 1950, e a tradicional 'amarelinha' não poderia ser utilizada porque era a cor da Suécia, anfitriões e adversários da decisão. Inicialmente, a determinação era que os donos da casa mudassem de uniforme, mas não foi bem assim quando rolou o impasse.
O Brasil teve que correr para confeccionar uma nova camisa. Uma reunião entre dirigentes, comissão técnica e jogadores decidiu que a Seleção entraria de azul. De acordo Paulo Machado de Carvalho, chefe de delegação do Brasil na Suécia, o uniforme teria a cor do manto de Nossa Senhora Aparecida. A decisão rendeu aplausos.
1ª estrela no peito
A final foi um verdadeiro recital de Pelé, Garrincha e cia para os 50 mil presentes no Estádio Råsunda. Os suecos abriram o placar aos 4 minutos de jogo, mas Didi tratou de acalmar os companheiros e lembrar que o Botafogo, que era base daquela Seleção, tinha goleado a Suécia. A virada veio ainda no primeiro tempo. O título foi confirmado com uma goleada por 5 a 2.
A exibição da equipe comandada por Feola foi tão impressionante que encantou até a torcida local. "O estádio inteiro nos aplaudiu de pé, eles estavam felizes. Os jogadores rivais também nos parabenizaram, não teve um pontapé", recordou Pepe. O trauma de 1950 estava definitivamente no passado, o Brasil era finalmente campeão mundial de futebol.
E o orgulho por ter feito parte da história ainda permanece vivo tanto no olhar como nas palavras de Pepe mesmo após 64 anos dessa inédita conquista.