Morto-vivo no avião, cartas queimadas e Deus questionado: histórias do bicampeão Pepe
Canhão da Vila relembrou episódios da campanha vitoriosa do Brasil no Mundial do Chile em 1962
"Papai do céu, de novo? Será que eu não mereço?". Esse foi o primeiro pensamento de Pepe quando viu o filme de quatro anos antes se repetir e perder a vaga no time titular da Seleção Brasileira novamente uma semana antes do início no torneio no Chile. Dessa vez, foi um trauma no joelho que custou ao Canhão da Vila a oportunidade de fazer valer a titularidade que recuperou durante o ciclo de 1958 a 1962.
Assim como Feola --técnico de 1958--, o treinador Aymoré Moreira recorreu a Zagallo para começar entre os 11. Como todos sabemos, o 'Velho Lobo' é supersticioso e difícil não pensar que ele não se lembrou do resultado no Mundial anterior quando foi acionado após o infortúnio do companheiro.
João Havelange, presidente da CBD, correspondente à Confederação Brasileira de Futebol (CBF) nos dias atuais, já tinha pedido ao novo comandante do Brasil para seguir tudo o que tinha dado certo há quatro anos. Com isso, o mesmo avião e o mesmo piloto que conduziram a equipe até a Suécia foram incumbidos de transportar os campeões mundiais até o Chile na busca pelo sonho do bicampeonato.
Durante toda a entrevista exclusiva para o Terra para o especial O Caminho da 6ª Estrela, que resgata a história de cada um dos cinco títulos do Brasil em Copas do Mundo a partir da memória dos próprios heróis, o bom humor de Pepe se destacou. O tom de voz só abaixou quando ele não conseguiu esconder a frustração de nunca ter defendido a Seleção Brasileiro em Copas do Mundo mesmo estando no grupo responsável por colocar duas das cinco estrelas na camisa amarelinha e sendo um dos grandes jogadores da história do futebol brasileiro.
"Vou ter sempre essa frustração, mas você está me entrevistado porque eu sou campeão mundial, né? E depois eu tive a felicidade de me preparar e ser bicampeão mundial jogando pelo Santos. Se eu não tivesse jogado, o Santos não teria vencido."
Diferente do que aconteceu na Suécia, a Seleção chegou ao Chile com o status de favorita. O reinado de Pelé já era uma realidade. O País do futebol não era mais a Inglaterra, onde nasceu a modalidade mais popular do planeta, e sim, o Brasil. "Era praticamente a mesma Seleção, só que quatro anos mais velha", ressaltou Pepe.
O furor era tamanho que a preparação precisou mudar de lugar. Inicialmente, o grupo estava reunido em um hotel em Nova Friburgo, no Rio de Janeiro. Porém, o grande número de hóspedes, torcedores e jornalistas impedia que os treinamentos ocorressem de maneira tranquila. A solução foi levar a concentração para Serra Negra, no interior de São Paulo, em busca de paz e tranquilidade.
A distância entre as duas Copas do Mundo pode ter diminuído o brilhantismo do Brasil, mas a qualidade era inquestionável. Para Pepe, era um grupo que sabia muito bem o que precisava fazer para vencer e como anular os pontos fortes do adversário. Mas não só isso. O time também tinha experiência para lidar com a ansiedade e os momentos de nervos à flor da pele durante o Mundial.
A busca pelo bi começou com uma vitória tranquila contra o México. A partida ficou marcada por (mais) um gol antológico de Pelé. O camisa 10 driblou todos os defensores rivais antes de estufar a rede. Seria o começo de mais um desfile do rei? Não, o destino não seria tão generoso com o craque. Na partida seguinte, ele se machucou e se despediu da competição.
O que poderia se tornar um drama, foi resolvido pelo protagonismo de um ponta habilidoso, dono de pernas tortas, mas que entortava mesmo eram os rivais: Mané Garrincha. "Toca no Mané, toca no mané...", esgoelava o lateral Nilton Santos, pedindo que a Seleção aproveitasse o talento do companheiro de Botafogo.
"Partiu Garrincha pela ponta direita, deixou o defensor para trás. Cadê a bola? Já driblou Mané, cruzou para Vavá, é gollllll do Brasil". Essa foi uma cena que se repetiu algumas vezes no Chile. Vavá e Garrincha marcaram quatro vezes cada um e foram os grandes nomes do setor ofensivo daquela Seleção.
A vaga de Pelé no time titular ficou com Amarildo. "O Possesso entrou e deu conta do recado. Ele adorou o apelido [dado pelo escritor Nelson Rodrigues]. Ele jogou muito bem, ele era uma figura", relembrou Pepe com sorriso no rosto ao falar do antigo companheiro. "Ele estava acostumado a jogar com metade daqueles jogadores no Botafogo."
A grande exibição no Brasil ocorreu nas quartas de final contra a Inglaterra. A vitória por 3 a 1 foi tão convincente que até um cachorro quis entrar em campo. O goleiro da seleção inglesa tentou parar o animal, que conseguiu fugir e passou até por Garrincha. Coube ao atacante Jimmy Greaves tirar o cãozinho do gramado.
Na semifinal, o Brasil venceu o anfitrião Chile, que foi a grande surpresa no torneio. Na decisão, um novo encontro com a Tchecoslováquia, rival do duelo em que Pelé se machucou. Assim como em 1958, a Seleção saiu atrás do placar. Quis o destino que Amarildo fizesse o gol de empate. A virada saiu dos pés de Zito e Vavá fechou a conta para selar o bicampeonato mundial.
O assédio que já era grande ficou ainda maior após o bicampeonato. Pepe, que recebe cartas de fãs do mundo todo até hoje, ganhava muitos recados das admiradoras que conquistou com o seu talento com a bola no pé e charme com a sua cabeleireira vistosa. O Canhão teve até uma namorada peruana. "Eles adoram o futebol brasileiro no Peru", recordou. Porém, o passado galanteador virou pó após José Macia, nome de batismo do craque, oficializar a união com Dona Nélia, um ano após o Mundial no Chile. "Ela pegou todas as cartas, fez uma fogueira e colocou fogo", contou aos risos. "Fui muito feliz com a minha família."
Morto-vivo no avião
Durante a agradável conversa de quase 2 horas, com direito a uma pausa para o café da tarde com um delicioso bolo, Pepe relembrou histórias com Pelé. A longa parceira com o Rei do Futebol no Santos e na Seleção Brasileira trai a memória e não permite Canhão --atualmente com 87 anos-- precisar a data de um dos causos mais marcantes entre os dois.
Durante uma viagem, o avião precisou pousar e foi pedido para que toda a delegação deixasse a aeronave para uma limpeza. Pelé esperou todo o elenco descer e foi conversar com a aeromoça. "'Eu não posso ficar aqui? Tem muita gente lá fora, se eu descer, vai ser uma confusão, vão pedir autógrafos, entrevista...'. 'Não, o senhor precisa descer'. 'Por favor, todo mundo já foi'. 'O senhor está vendo aquele outro senhor sentado? Então, ele está morto, precisamos retirá-lo'."
"O Pelé saiu correndo do avião, deu autógrafos, falou com todo mundo. Foi muito engraçado”, relembrou Pepe para as gargalhadas de todos os presentes na sala do apartamento do ex-jogador em Santos, no litoral de São Paulo.