Um dia 'Vinizinho', hoje Vini Jr.: atacante se tornou a esperança do hexa brasileiro
Especial O Caminho da 6ª Estrela resgata a história de um dos mais importantes jogadores da atual Seleção Brasileira
Dois amigos participavam de um campeonato de futebol pelo colégio em Barra Mansa, região Sul do estado do Rio de Janeiro. Naquele sábado, entre um jogo e outro, a fome bateu e resolveram juntar o pouco dinheiro que tinham para dividir um lanche na padaria da esquina.
Ao contrário do que possa parecer, não havia qualquer aflição naquele episódio. A recordação que veio à tona se deu em meio a risos e um saudosismo ímpar, do tipo que sentimos quando lembramos os melhores momentos da infância que não voltam mais.
Davi Vasquez sabe que nada voltará a ser como nos velhos tempos. Até porque seu parceiro naquele 'baba' se tornou um dos principais nomes da Seleção Brasileira: Vinícius José Paixão de Oliveira Júnior. Para aqueles que dividiam o campo com o atacante em 2012, Vinizinho. Para os brasileiros, Vini Jr., a esperança do tão esperado hexa.
Como um garoto que cresceu em uma das regiões mais perigosas e pobres do Rio do Janeiro se tornou o Vini Jr. do Flamengo, do Real Madrid e, agora, da Seleção?
Foi o questionamento que fiz por mais de uma vez quando cheguei em Porto Rosa, bairro de São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Antecipo que a surpresa com a ascensão meteórica, mesmo diante das condições a ele impostas, fica somente entre nós --eu que escrevo e você que lê. Para aqueles que o conhecem, o Flamengo e a Seleção Brasileira eram consequências naturais de um menino focado, que respira futebol desde os 6 anos de idade.
Direto de São Gonçalo
O local onde Vinizinho cresceu segue o repertório dos subúrbios cariocas: otimismo e bom humor tentam aliviar as mazelas sociais decorrentes da histórica desigualdade que marca o Brasil. No Rio, em especial, a geografia evidencia tamanha disparidade. Separados pela ponte Rio-Niterói estão São Gonçalo, região de menor renda per capita do Estado, e os bairros da Zona Sul, com o metro quadrado mais caro do País.
As ruas de Porto Rosa são repletas de homenagens ao filho mais ilustre da região. A sensação era que todos ali traziam consigo alguma história para contar do jogador e não demorou muito para minha percepção se comprovar verdadeira. Aguardava inquieto a chegada do primeiro técnico do Vini Jr., sentado em uma lanchonete em frente à Escolinha do Fla, no bairro do Mutuá.
De repente, a espera é interrompida: "Você sabia que o Vinicius Junior jogou ali na frente? Ele vinha muito aqui comer com os amigos", contou o comerciante, após observar um cliente levantando e voltando inúmeras vezes em direção à entrada da escolinha.
Na fachada da unidade, que só funciona à tarde, um pôster em homenagem ao jogador que ali fora forjado dava indícios do que estava por vir. Já na escola, fomos apresentados a centenas de fotos e troféus que ilustravam a potência de Vini Jr. Foram sete anos sob o comando de Carlos Eduardo, o Cacau, seu técnico na escolinha.
"Era diferente, era diferente de tudo que eu já vi", lembra Cacau, sobre as impressões ao ver o menino em ação pela primeira vez em 2006. "O pai trouxe ele para treinar aqui com a gente quando o Vinizinho tinha 6 anos. Ele começou a se destacar, participar dos treinos, das competições. Era muito alegre dentro e fora de campo. Tinha uma qualidade técnica muito acima dos meninos da sua idade. A gente colocou ele para disputar campeonatos em categorias acima e, mesmo assim, ele continuou a ser destaque, não sentia dificuldades."
Aos 7 anos, Vini Jr. já provocava a mesma reação que os torcedores têm hoje ao vê-lo jogar. Fernando Lessa, técnico do Colégio Odete São Paio, fez o que pôde para "adquirir os direitos" do prodígio.
"Ele tinha 7 anos e eu o vi jogando em uma competição contra meninos de 10 anos. Ele simplesmente acabou com a competição. Isso me chamou muito a atenção. O Vinizinho era muito diferente das outras crianças", conta. "Falei para o diretor, 'a gente precisa trazer esse menino para cá'".
O diretor era Diego Sampaio, também dono do colégio, um dos melhores da região. Ele precisou olhar com os próprios olhos para compreender o que outras pessoas já sabiam: "Ele era diferenciado". "Foi aí que eu entendi o que o Fernando estava falando. Vinizinho veio com 7 anos e ficou até os 14 anos, saiu daqui de 2013 para 2014. Ele era muito fora da curva."
Disputar com meninos mais velhos não era, mesmo, um problema para Vini Jr. Aos 8 anos, foi transferido para a categoria de crianças a partir dos 11 anos, porque os pais dos colegas da sua idade se queixavam de ele nunca passar a bola. A mudança não mudou muita coisa, porque o craque continuou com seu estilo de jogo. Ao menos a bronca dos outros pais não existia mais, conta aliviado Cacau.
Mas se engana quem pensa que a personalidade em campo era reflexo de alguma arrogância ou superioridade. Alegria, foco, humildade, determinação e mais um pouco de foco são marcas que parecem acompanhar o ídolo do Flamengo desde a infância.
"Mesmo sem a gente pedir, ele sempre volta aqui para conversar com os meninos mais jovens. Falar sobre a sua experiência, conquistas, mostrar os troféus e incentivar a criançada", conta Valéria, administradora da escolinha e esposa de Cacau.
Habilidade nos campos, estratégia nas quadras
Habilidoso em campo, foi na quadra de futsal onde Vini Jr. desenvolveu o raciocínio e o drible rápido, duas características daqueles que jogam a modalidade. "Foi aqui que ele passou grande parte do tempo. Foi nesse lugar. Se deixasse, ele ficava aqui de domingo a domingo. Ele era muito focado", diz Diego Sampaio com tom de orgulho e ao dar à quadra ares de um verdadeiro santuário.
Com tradição no esporte, o colégio concedeu uma bolsa de estudos para Vini Jr. e Davi, aquele amigo de infância com quem ele dividia o lanche após os campeonatos. A dupla de amigos tinha uma rotina puxada. Neste período, Vinicius e Davi se destacaram na Escolinha do Flamengo e foram para o sub-11 do rubro-negro. O ano era 2010.
"Era muita correria. Íamos do colégio para o Ninho do Urubu todos os dias, meu pai levava nós dois. Jogamos pelo Odete e ao mesmo tempo pelo Flamengo. Era intenso, era de domingo a domingo futebol. Foi assim durante quatro anos. A gente não tinha tempo para nada", lembra Davi, em referência ao centro de treinamento a 69 quilômetros de São Gonçalo.
O esforço valeu a pena. Em sete anos, Vinizinho começou a chamar a atenção de toda a comissão técnica da Gávea e passou a ser Vinícius Jr., do Flamengo. O atleta passou pelas categorias de base, jogou no profissional e aos 18 anos foi vendido ao Real Madrid por 45 milhões de euros – na época, cerca de R$ 164 milhões. É a maior transferência da história do Fla até hoje, e a segunda maior do futebol brasileiro.
Nesse mesmo período, Vini Jr. foi figurinha certa nas listas de convocações para os principais campeonatos disputados pelas seleções brasileiras e de base. Em 2019, ele foi convocado por Tite. A confirmação de Vini Jr. para a Copa do Mundo do Catar, no último dia 7, deixou seus amigos e familiares orgulhosos, mas nem um pouco surpresos.
"Não me surpreendi, nem ninguém aqui em casa. Como a gente acompanhou ele desde os 6 anos de idade, a gente sabia que uma hora ia acontecer. Desde sempre a gente sabia que ele tinha algo diferente. Não tinha como, era certeza", diz Davi.
Do 'Craquinhos de Ouro' para o Catar
Após ouvir todos estes relatos faltava ainda conversar com aqueles que fizeram parte do círculo mais íntimo do jogador: a família. Soube pelas andanças por Porto Rosa que um dos seus tios ainda morava no bairro. O local era o mesmo lugar onde Vinizinho viveu seus primeiros anos de vida.
Ao chegar no endereço indicado, tive certeza que ali era a rua onde ele cresceu. A viela sem saída era simples, calma e tranquila, mesmos adjetivos usados pela professora de português Teresa, ao descrever a personalidade do seu aluno em sala.
Mesmo sem o número exato da casa, não desisti de encontrar o lugar onde Vinícius Júnior morou. Sem sucesso, me aproximei de dois jovens e interrompi a conversa animada que tinham na calçada: "Você sabe onde fica a casa do Maurício?", perguntei. "Qual Maurício? Não mora nenhum Maurício aqui, não", falou o garoto.
"Me indicaram, falaram que era por aqui que…", insisti, até que dessa vez eu fui interrompido. "Cara, tu tá procurando quem?". "Sou jornalista", falei e, mesmo sem saber, disse tudo o que ele precisava para me dar uma resposta: "Ah, você tá atrás da casa do Vini Jr., né ? Segue em frente e vira a primeira à direita", respondeu rindo, como se não fosse a primeira vez que perguntavam isso a ele.
A sorte parecia ao meu lado. Da janela da cozinha, vi o tal tio enxugando um prato. Me apresentei e Maurício foi direto: "Precisa da autorização do assessor do Vini". Eu já tinha tentado esse caminho, mas sem sucesso.
Depois de muito relutar, ele impôs algumas condições para falar: sem fotos da casa e que o endereço permanecesse desconhecido do público.
"Desde pequeno o Juninho falava de um dia jogar no Flamengo e na Seleção. Vimos a Copa de 2014 juntos aqui. Ele ajudava a enfeitar essa rua para a Copa. Hoje, ver ele lá disputando o mundial com a Seleção, é gratificante", revela. Apontando para o braço, ele continua: "É de arrepiar".
"Juninho?", pergunto. "É, pô, todo mundo conhece ele como Juninho. Até hoje a gente da família só chama ele de Juninho. A gente não se acostumou a chamar ele de Vinícius Jr não. Só de Juninho mesmo", acrescenta.
Tio e o sobrinho eram muito próximos, já que o mesmo terreno abrigava diferentes casas da família. A rotina, como já anunciado por todos que conviviam com Vinizinho, ou Juninho, girava em torno da bola.
"Sempre estava com ele para baixo e para cima. Levava ele aos jogos, nos testes e treinos de futebol e futsal. Teve uma vez que foi engraçado, me lembro bem. Tinha um jogo em Niterói e a mãe dele não podia levar. Ele chegou chorando, dizendo que queria jogar. O jogo era às 17:30, saída às 17 horas. Ele trocou a roupa no ônibus mesmo. Ele chegou lá e o jogo já tinha começado. O treinador não queria colocar o Juninho porque ele tinha chegado atrasado. Aí a torcida começou a gritar 'Vinícius! Vinícius! Vinícius'. O jogo estava 2 x 0, no final foi 4 x 2, quatro gols dele", lembra.
Daquela rua à direita para os melhores e maiores campos de futebol do mundo, o destino de Vini Jr. parecia já de conhecimento de todos. Não era uma questão de "se ele conseguiria", mas "quando isso iria acontecer". "A gente sabia que ele ia chegar lá. Ele era muito focado e centrado na carreira dele", reforça o tio.
Antes que pudesse me despedir, escutei Maurício falar sobre o campo do "Craquinhos de Ouro". O projeto reunia os meninos do bairro que gostavam de jogar bola, e Juninho não ficou de fora.
Apesar do horário e das nuvens carregadas que se formavam, num prenúncio de que a chuva cairia a qualquer momento, decidi conhecer o primeiro campo onde pisou o ídolo brasileiro. O Craquinhos de Ouro FC , infelizmente, não existe mais, mas o campo de grama sintética continua lá, intacto. E os futuros craques do futebol brasileiro também estavam lá.
Enquanto registrava o jogo, um deles se aproximou: "Tio, você é olheiro?". Disse que não e, antes que pudesse falar qualquer outra coisa, fui surpreendido: "Você sabia que o Vini Jr. começou a jogar bola aqui?". "Comecei a jogar bola por causa dele. Também jogo na escolinha do Cacau", acrescentou ele, que não escondeu o orgulho de seguir o caminho do antigo vizinho e, agora, ídolo.
A reportagem integra o especial O Caminho da 6ª Estrela, que resgata a história de cada um dos títulos do Brasil em Copas do Mundo --1958, 1962, 1970, 1994 e 2002--, bem como a história de vida de um dos principais nomes da Seleção Brasileira que busca o hexa no Catar.