“Quem mói no asp’ro não fantaseia”, disse Riobaldo Tatarana no Grande Sertão de Guimarães Rosa. Riobaldo era jagunço, é bom que se esclareça. E jagunços não são mesmo dados a fantasiar as coisas. Afinal, dizia ele, o sertão é um lugar onde os pastos carecem de cercas e se o próprio Deus resolver vir, é melhor que venha armado.
Talvez por considerar encerrado o tempo de fantasia e encantamento na história da seleção brasileira, o presidente da CBF decidiu fazer uma das mais aterradoras declarações da história do esporte nacional. “Quero um time de bandidos”, disse ele. Um time de jagunços, atenuo eu, tentando trazer um pouco de literatura e regionalismo para a questão.
O desespero é mesmo capaz de tirar do sujeito qualquer réstia de compostura, e digo mais: poucas coisas se construíram no mundo sem uns momentos do mais puro desespero. Basta lembrar da grande virada na trajetória da seleção campeã do mundo em 94, coincidentemente num jogo contra o Uruguai. O amigo leitor poderá pensar que eu falo do jogo do Maracanã, do jogo do Romário. Mas a virada não ocorreu ali. Jogando em casa, e ainda mais com um Romário maior do que a vida – como ele costuma ser nos momentos decisivos – tínhamos a certeza da vitória. O verdadeiro jogo da virada foi em Montevidéu, meses antes, onde uma derrota faria com que aquele último jogo no Maracanã servisse apenas para cumprir tabela e aplaudirmos a classificação antecipada dos vizinhos cisplatinos.
Pois naquele jogo no Uruguai, logo aos dois minutos do primeiro tempo, quando ninguém mais acreditava que aquela seleção reconhecida como frouxa fosse capaz de esboçar uma reação, o nosso Branco velho de guerra aproveitou uma bola bêbada no lado esquerdo do campo e voou com os dois pés na goela de um adversário. A reação da torcida foi de espanto e incredulidade. O que era aquilo? Será que a tal seleção brasileira tão triste e delicada tinha aprendido a jogar duro? Dali em diante o jogo se tornou uma carnificina, empatamos em 1 x 1 e jamais voltamos a perder uma partida oficial até a consagração nos Estados Unidos – aliás, outra vez com o auxílio épico do Branco, naquela cobrança de falta contra a Holanda que o Parreira classificou como “o gol do campeonato”.
Desesperados estávamos em 93 contra os uruguaios e desesperados estamos outra vez agora, contra os mesmos e eternos fantasmas. Para o cargo de síndico do desespero nacional convocamos um técnico que, ao menos no nome, leva jeito para jagunço: Felipão. Leva jeito no nome e, pelos episódios de truculência em sua biografia de técnico e jogador, diria que também leva jeito no caráter.
Mas será Felipão um jagunço de verdade? Voltemos ao Riobaldo. Antes de ser jagunço, ele foi professor. Entrou para a jagunçada por falta de perspectivas, de opções. Atravessou o sertão, matou gente, venceu e perdeu batalhas mas, desiludido com a morte de sua Diadorim, voltou a ser uma figura pacata e reflexiva. Rioblado não era um jagunço vocacional, como era por exemplo o Hermógenes – mau até morrer, encarnação do cramulhão e que jamais poderia ter sido mesmo outra coisa. Riobaldo esteve jagunço, mas não era jagunço. E o Felipão?
A questão não é puramente literária, caro leitor. Da resposta a esse dilema depende o futuro do país das botinadas. Ora, se quando Felipão foi jagunço nos times pelos quais passou o fez por necessidade, por não ter recursos para agir de outra maneira, isso é uma coisa. Se na seleção brasileira, podendo contar com qualquer jogador pátrio em seu time, onde com um estalar de dedos pode ter tudo – de uma psicóloga de Harvard a um grupo de anões massagistas de Kuala Lumpur – ele preferir continuar agindo como jagunço, estaremos no caminho errado.
A seleção brasileira não foi criada para reunir times de jogo tosco e pragmático. Não sabemos jogar assim e posso dizer que graças a Deus jamais saberemos. Aliás, vale lembrar que não houve na história das copas uma única seleção que tivesse se sagrado campeã com um “futebol brucutu”, para usar a feliz expressão do Tostão.
Van Gogh não saberia fotografar em preto-e-branco assim como o nosso Sebastião Salgado não deve ser bom pintando com uma palheta multicolorida. Cada macaco no seu galho, como diria o outro, e nosso galho é o do futebol ofensivo. Não mais irresponsável ou inocente, mas definitivamente ofensivo. Pergunte à moça que vende fantasias na Casa Turuna, ao trocador do 260 Praça XV – Valqueire, ou mesmo aos meninos equilibristas no sinal da Lagoa como eles gostariam de ver o Brasil jogar. Para frente, diriam todos. Para frente, insisto eu.
Sinceramente espero que o Felipão saiba ser jagunço quando necessário, como claramente será na próxima partida contra o Uruguai. Mas que, como Riobaldo, ele também saiba enxergar toda a poesia que existe no sertão. Mesmo no sertão do atual futebol brasileiro.