Isto vai soar um tanto extravagante para os leitores com menos de 30 anos, mas é a mais pura verdade. Quem não acreditar, pode dar uma passada nos sebos da Praça XV ou da rua do Lavradio e conferir nas revistas de época. Um giro pela linda Biblioteca Nacional, com direito a um inacreditável filé com alho no Cosmopolita, na saída, também poderá aliviar as dúvidas – e a fome - dos mais céticos. Eis a dura realidade: até meados dos anos 70, o Rio de Janeiro era uma cidade com cinco clubes grandes disputando suas glórias futebolísticas. Hoje, temos apenas dois.
Botafoguenses e tricolores tentamos até manter uma certa pose de eternos candidatos. Americanos, nem isso. Mas a verdade é que a última final de campeonato envolvendo Fluminense e Botafogo data de 1975, ano em que jogadores como Roger e Sandro não eram sequer nascidos. De lá para cá, fora alguma surpreendente aparição do Bangu, turbinado por cruzados novos das bancas do folclórico Castor de Andrade, as decisões de campeonato foram sempre assunto de Vasco e Flamengo contra alguém mais – e invariavelmente de um contra o outro.
Contei isso para explicar que placidamente me acostumei a acompanhar as decisões entre Flamengo e Vasco numa imparcialidade de suíço zen-budista. Só que no último Campeonato Carioca a coisa não foi bem assim. É que das poucas coisas que restaram do meu outrora glorioso Fluminense, duas me são muito caras: a primeira são os 28 títulos cariocas, recorde absoluto que nos fez "Campeões do Século". A segunda é o tetracampeonato de 1906, 1907, 1908 e 1909, até hoje não superado por qualquer outro clube do estado. Conquistas quase centenárias, empoeiradas, bolorentas, dirão os rubro-negros e vascaínos. Mas os tricolores somos todos assim: nossas glórias são eternas – e rezamos todos os dias para que nossas desgraças sejam passageiras.
Portanto, ver o Flamengo contabilizando 27 títulos e a um passo de um tetracampeonato, me afligiu bastante. Sou pobre, faminto, quase indigente, em termos de glórias futebolísticas. Tenho pouco, e sofro só de pensar que o pouco que tenho me poderá ser tirado.
Mas vamos deixar de lado a infindável maré de tristeza do meu tricolor e falar da alegria ostensiva, vibrante, invasiva, quase indecente, do rubro-negro. Alegria renovada agora com o título da Copa dos Campeões. Nesse campeonato, aliás, sem as empoeiradas estatísticas a me torturar, acompanhei com gosto o Flamengo – que jogou sem dúvida o melhor futebol do ano entre os times brasileiros.
A verdade é uma só: esse time do Flamengo é desde já fortíssimo candidato à conquista do Campeonato Brasileiro (quando e se for realizado) e da Libertadores. Joga de forma destemida, organizada, vibrante, e dá show. Apenas para provar uma vez mais que é possível sim termos uma seleção vencedora e ao mesmo tempo espetacular.
E pensar que vivemos o suficiente para ver a Seleção Brasileira perder quatro jogos seguidos – e um sérvio ocupando a posição de melhor jogador em atividade no país. Petkovic está jogando o fino. E vale até uma provocação: alguém se lembra de Zico ter decidido dois títulos tão importantes, com cobranças de faltas tão perfeitas, quanto às do sérvio contra Vasco e São Paulo?
Pois a genialidade de Petkovic concedeu a essa antes desacreditada equipe do Flamengo uma oportunidade de igualar a façanha da geração de ouro de 1980. E ao velho e apaixonado boleiro Zagallo, a chance e conquistar os únicos títulos que ainda não constam de seu currículo: a Taça Libertadores e o Mundial Interclubes. Ainda sobre Zagallo, só mais um comentário: tivesse ele nascido num país com um pingo de apego histórico, cada partida de sua equipe seria uma celebração interminável de seu talento e paixão. Aqui, bastará que o Flamengo inicie mal o Campeonato Brasileiro para que os imbecis de sempre voltem com as cobranças, como se esse maravilhoso brasileiro precisasse ainda provar alguma coisa a alguém.
Amigo leitor, o Flamengo nasceu do Fluminense. Durante dez anos houve Fluminense sem haver Flamengo, mas afirmo sem medo de errar que jamais haverá Flamengo sem haver Fluminense. Até no nosso destino de heróis trágicos nós completamos os rubro-negros, em seu destino de heróis épicos. É por isso que me sinto muito à vontade para enaltecer as conquistas rubro-negras. Quem meus filhos beija, meu coração adoça – como dizia a avó Eulália, entre a preparação de um rocambole de goiaba e algumas de suas famosas brevidades.
A folha-seca do Pet contra o Vasco gravou para sempre uma estrela no "manto sagrado" rubro-negro. Agora o Flamengo vai atrás de novas conquistas. Para encher de estrelas a noite dos seus torcedores, das mansões abastadas da orla carioca até as mais pobres casinhas de teto de zinco, Brasil afora. Torcedores de um time que, jogue onde jogue, será sempre o time da casa. “Uma Força da Natureza, que venta, troveja, relampeja”, como dizia Nelson Rodrigues. Outro tricolor que admirava o Flamengo.