Estava eu almoçando calmamente – se é que se pode ficar calmo diante de um substancial medalhão à piamontesa do Lamas – quando ouvi uma voz fina, quase um murmúrio, vinda sei lá de onde. Apurei os ouvidos, ainda que com claro prejuízo do estado de sentinela no qual àquela altura já se encontrava meu estômago, para tentar identificar a origem da voz misteriosa. Seria algum fantasma do passado de glórias do velho restaurante do Flamengo? Talvez fosse Getúlio Vargas, ou Otto Lara Resende, ou Stanislau Ponte Preta, ou até o Nelson... Meu Deus, Seria o Nelson? Torci para que sim, para que estivesse frente ao privilégio de um colóquio mediúnico com o maior cronista esportivo dessa e de outras vidas, mas não. A voz gutural do Sátiro da Aldeia Campista, mesmo desencarnada, não teria jamais aquela delicadeza, aquele timbre de pardal madrugador.
Num tremendo esforço auditivo, consegui finalmente distinguir o que dizia a tal voz : “Fala do Rodrigo, fala do Rodrigo...”, dizia ela. E aí me vi diante de uma encruzilhada: ou se tratava de um espírito botafoguense – o que descartaria de vez a hipótese de ser o Nelson Rodrigues – ou aquilo era o início de um processo de esquizofrenia do autor destas mal traçadas. Já estava considerando firmemente a desesperadora hipótese de oferecer minha alma perturbada aos cuidados de um psicanalista, quando num gesto de puro reflexo afastei a cesta dos pãezinhos e bem ali, entre o saleiro e as garrafinhas de óleo e vinagre, quase que oculto por um guardanapo, encontrei o anacoreta.
Anacoreta, como ele mesmo – dono de vastíssima e insuportável cultura – me ensinou, é o sujeito que vive uma vida de reclusão, afastado de qualquer contato social, para se dedicar apenas às questões do espírito. Em suma: o anacoreta é antes de tudo um ser triste, ainda que sem razão lógica para tal. E isso é bem verdade no caso do amigo em questão, pois além do sobrenome capaz de arrombar as portas do céu, da saúde financeira de vaca premiada, da já citada cultura asfixiante e da família maravilhosa, é ainda um dos mais talentosos documentaristas vivos, com citações juncadas de gloriosos adjetivos em todas as publicações mundiais sobre o tema.
Pois nada disso importa para o anacoreta, que entre todas as possibilidades que a vida lhe ofereceu, preferiu o caminho da mais espessa e fatal depressão. É um ser gótico que, apenas para dar um exemplo, adora comédias antigas, desde que sejam estreladas por Buster Keaton – justamente o comediante que nunca riu, e que aceitava as sucessivas desgraças que a vida colocava em seu caminho como o mais inevitável e merecido dos destinos.
Pois depois de muito refletir – e refletir é com ele mesmo – o anacoreta decidiu que deveria ter um time de futebol. Escolheu o Botafogo. Por dois motivos: em primeiro lugar pelas sóbrias cores do pavilhão do time, as mesmas dos filmes de Buster Keaton. E finalmente porque ele jamais conseguiu ficar insensível ao calvário do time que, além dos 21 anos sem títulos, foi muitas vezes vitimado por tragédias que sua própria torcida classifica como “coisas que só acontecem ao Botafogo”. De Garrincha, por exemplo, ele não gosta tanto dos dribles e jogadas geniais, mas especialmente da vida trágica e sofrida. Coisas de anacoreta.
Apesar da frustração de ter visto o time do coração explodir em desavergonhada alegria com o bicampeonato carioca de 89 e 90 e com o título brasileiro de 95, o anacoreta acabou mantendo-se como um apaixonado torcedor alvinegro, na esperança de que dias piores estivessem por chegar.
O Botafogo é, portanto, a grande paixão do anacoreta – e apenas o amor pelo clube é capaz de tirá-lo de seu severo claustro para levá-lo a lugares de alegria tão ultrajante como o Maracanã no domingo ou o Lamas no sábado. E, naquele momento, ele estava ali, vestido com seu capuz de monge e seus andrajos escuros, para pedir ao amigo cronista que dedicasse algum espaço – “muito discreto”, insistia – para falar desse jogador maravilhoso que é o Rodrigo.
A verdade é que nem seria necessária a fantasmagórica intervenção para que eu dedicasse algumas linhas ao jogador. Se não por seu talento futebolístico, ao menos pelo fato de se tratar de um colega de letras. Sim, amigo leitor, porque Rodrigo é antes de mais nada um Eça, um Saramago. Quem já teve a oportunidade de ouvir uma entrevista do craque certamente maravilhou-se com seu português castiço e sua desenvoltura de orador.
Mas deixemos essa questão de lado porque, ainda que não pareça, esta é uma coluna de futebol. E se o assunto é futebol, o jogador do Botafogo vem jogando um de primeiríssmo nível. Meio-campista efetivo, um dos artilheiros do Brasileirão, Rodrigo tem alguns atributos que andam meio escassos nesses tempos bicudos: chuta bem de fora da área, é oportunista, tem grande liderança e espírito de luta e, o principal, trata bem da bola.
O anacoreta – que aliás deve estar chateadíssimo, pois mesmo sem Rodrigo em campo o Botafogo venceu o Coritiba de virada – saiu de sua gruta úmida para, após muita observação, defender uns “discretíssmos elogios” para o craque do Botafogo. Mas não é preciso ter o poder de observação dos reclusos para que se perceba a qualidade do futebol de Rodrigo. E eu, que de anacoreta não tenho nada, vou mais além: que tal uma oportunidade para ele na Seleção? Ao menos nas coletivas de imprensa, o nosso Eça alvinegro teria performances indiscutivelmente memoráveis.