Noite de sábado em São Paulo. No improvável cenário da cidade que um dia foi chamada de “túmulo do samba” por Vinícius de Moraes, este colunista, carioca de Madureira, presenciou um dos mais emocionantes espetáculos de música de
sua vida. No auditório lotado do Memorial da América Latina cantaram juntos
os bambas Paulinho da Viola, Monarco, Casquinha, Elton Medeiros, Jair do
Cavaquinho e Nelson Sargento, num show em homenagem ao centenário de Paulo
da Portela e Clementina de Jesus. Todos esses gênios da raça integraram o
elenco original do show Rosa de Ouro, que enfeitiçou o país nos anos 60.
Ver essa verdadeira seleção do samba em ação, muitos dos quais com mais de
80 anos de idade, me fez refletir sobre a própria origem da palavra seleção,
ou seja: a escolha, a reunião, a escalação dos melhores. Muita coisa mudou
no país desde aquelas apresentações do Rosa de Ouro, mas se há algo que
definitivamente mudou para pior foram os critérios de convocação da Seleção
Brasileira.
Tente imaginar, amigo leitor, a boçal distância que percorremos desde 1970 –
onde João Saldanha e Zagallo tiveram a grandeza de manter no time todos os
craques maravilhosos que possuíamos, mesmo que para isso meias como
Rivellino, Tostão, Piazza e Clodoaldo tivessem que ser deslocados para
posições de ataque ou defesa – até a mais recente e controversa convocação
do Felipão. Entre essas duas listas, entre essas duas atitudes, está contida
toda a história da decadência do futebol brasileiro. Saldanha e Zagallo
sacrificavam até mesmo a tática para escalar os melhores. Felipão abre mão
dos melhores para não ter que mudar sua tática – mesmo quando ela não está
funcionando.
Nem mesmo o mais fervoroso adepto do futebol de resultados seria capaz de
afirmar que Felipão, de fato, chamou os melhores. É quase impossível
explicar a convocação dos limitados Cris, Eduardo Costa, Lúcio, Marcelinho
Paraíba e Edmilson; dos inativos Dida, Ronaldinho e Ronaldinho Gaúcho; e de
jogadores em péssima fase como Beletti e Vampeta. Ainda mais se tivermos em
conta quem deixou de ser chamado para que eles jogassem. Gente talentosa e
em muito melhor fase como Rogério Ceni, Julio César, Zinho, Roger, Rodrigo,
Juninho Pernambucano, Pedrinho e, até para quem prefere jogadores de
marcação, Fernando e Fábio Rochemback.
Fosse promotor de shows de samba, e nosso Felipão fatalmente barraria o
Paulinho da Viola para escalar algum pagodeiro de cabelo pintado, daqueles
conjuntos melosos que tocam música com letras vulgares e de duplo sentido.
Nossa sorte é que, insisto, já estamos na Copa do Mundo – pois só jogaremos
com times eliminados e desmotivados, dois dos quais dentro de casa. Os
chilenos sequer convocaram os jogadores que atuam no exterior – e escolheram
para técnico um sujeito que até então treinava um time que sequer sei dizer
o nome. Só espero que vitórias sobre essas mangas de colete, como diria a
Dona Eulália, não sejam alardeadas como a fatal e definitiva prova da
superioridade da retranca sobre o futebol vistoso. Isso, não nos deixemos
iludir, jamais funcionará na Copa do Mundo.
Mas se na Seleção o momento é de encarar adversários mais fáceis, no
Campeonato Brasileiro acabou a hora do recreio. Os jogos entre os times mais
tradicionais e os de menor torcida – não direi mais fracos, pois os
resultados mostram que isso não é verdade – terminaram ontem. Daqui para a
frente, só clássicos – o que significa dizer que jogarão entre si os quatro
grandes clubes do Rio, os quatro de São Paulo, os dois de Minas e os dois do
Rio Grande do Sul.
A tarefa vai ser muito mais dura, e quem não conseguiu até aqui sua vaga
entre os oito vai ter que suar em dobro até o final da fase de
classificação. Dentro dessa lógica, Palmeiras, Atlético Mineiro, Fluminense,
Inter e São Paulo cumpriram seu papel, por terem ficado entre os oito. E
melhor ainda estão São Caetano, Paraná e Atlético Paranaense, que mesmo
tendo enfrentado todos os grandes clubes garantiram um lugar entre os
primeiros colocados. Teoricamente, essas três equipes são favoritas para
ficar com as vagas, pois daqui para frente só pegarão times de menor
tradição.
Na situação oposta estão Flamengo, Corinthians, Vasco e Botafogo, que mesmo
poupados dos confrontos mais duros, estão cada vez mais líderes... da parte
de baixo da tabela. Só que como é mais fácil encontrar lógica num filme do
Buñuel ou num quadro do Dalí que num campeonato de futebol, é bem possível
que algumas dessas equipes encontrem seu melhor nível justamente contra os
adversários mais tradicionais. Mas quem viu o Botafogo mantendo a tradição
de perder quase todas em casa; o olé do Gama no Flamengo; a goleada do fraco
Guarani no Corinthians; e o Vasco brigando com patrocinadores, com
fornecedores de material esportivo, com Romário, com a CPI e com a
televisão, custa a crer nessa hipótese.
Vamos torcer para que o que resta da temporada permita que Felipão e o
Campeonato Brasileiro consigam separar mais claramente quem é bamba de quem
não sabe sambar.